quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A AMENDOEIRA NO SEU JARDIM


Pausa em retiro zen de silêncio em Florianópolis.

A AMENDOEIRA NO SEU JARDIM

Falei sobre a contemplação na interdependência. Sei, Quang, que você entende que os métodos para se encontrar a verdade devem ser vistos como meios e não como fim. Convém, no entanto que fique claro aos praticantes que a meditação na interdependência é aplicada para remover as falsas barreiras da discriminação e capacitá-los assim a ingressar na harmonia universal da vida. Seu propósito não é criar ou aderir a algum sistema filosófico.
Hermann Esse em seu romance Siddharta, não tinha ainda visto isso. Por conseguinte, seu personagem Siddharta filosofa sobre a interdependência com palavras um tanto ingênuas. O autor oferece um quadro da interdependência, em que tudo está inter-relacionado e nenhuma falha pode ser encontrada: Tudo tem que se encaixar dentro do sistema infalível da mútua dependência, e diz que esse é um sistema no qual não pode ser considerado o problema da libertação nesse mundo.

Segundo os ensinamentos do Vijnanavada, a realidade tem três naturezas: imaginação (Vikalpa), interdependência (Paratantra) e perfeição última (Nispanna). Consideremos primeiro a interdependência da forma sugerida pelo Vijnanavada. Por causa do esquecimento e dos preconceitos, nós normalmente encobrimos a realidade com o véu da falsa visão e das opiniões. Isto é ver a realidade através da imaginação. A imaginação é uma ilusão da realidade que concebe a realidade como uma agregação de entidades separadas e com existência própria. A fim de romper com a Vikalpa o praticante medita na natureza da interdependência ou inter-relacionamento dos fenômenos no processo da criação e da destruição. Essa consideração é uma forma de contemplar e não uma base de uma doutrina filosófica. Se o praticante se atém apenas ao sistema de conceitos ele encalha. A meditação Paratantra é para ajudar a pessoa a penetrar na realidade e assim se tornar una com ela, e para não aprisioná-la a conceitos filosóficos da Paratantra. O barco é usado para atravessar o rio, e não para ser carregado sobre os ombros. O dedo que aponta a lua não é a lua.

Finalmente chega-se ao Parinispanna, ou seja, à natureza da perfeição última. Parinispanna significa realidade livre de todas as falsas ilusões produzidas pela imaginação. Realidade é realidade, ela transcende todos os conceitos. Não existe conceito que possa descrevê-la adequadamente, nem tampouco o próprio conceito da interdependência. Para assegurar que o praticante não se apegue à Parinispanna como um conceito filosófico, os ensinamentos do Vijnanavada falam das três não naturezas, impedindo assim que ele se aprisione à doutrina das três naturezas. A essência do ensinamento mahayana reside nisso.

Quando a realidade é percebida em sua natureza de perfeição última, o praticante atinge o grau de sabedoria conhecido como mente não discriminativa: uma maravilhosa comunhão na qual não mais existe distinção entre sujeito e objeto.

Quang, isto não é um estágio tão distante e inatingível. Qualquer um que persista em praticar tem a chance de, ao menos, provar o seu sabor. Em minha escrivaninha, tenho uma pilha de papeis requisitando a adoção para crianças órfãs. Traduzo alguns deles por dia. Antes de começar a traduzir uma pilha, olho dentro dos olhos da criança na foto, observando atentamente sua feição e expressão. E sinto uma profunda ligação entre mim e cada criança, que me permite entrar em especial comunhão com elas. Ocorre-me agora, enquanto lhe escrevo que a comunhão que experimento ao traduzir uma simples linha desses pedidos é uma espécie de mente não discriminativa. Eu não mais vejo o “eu” que traduz os pedidos para as crianças, não mais vejo a criança que recebe amor e ajuda. A criança e eu somos um só: não há um que se compadece e outro que pede ajuda. Não há tarefa, não há traba lho social a ser feito, não há compaixão. Quang, se esses momentos não são de mente não discriminativa, o que hão de ser então?

Quando a realidade é experimentada em sua natureza de perfeição última, a amendoeira em seu jardim revelará sua natureza, em perfeita totalidade. Amendoeira é ela própria Verdade, Natureza de Budha, Realidade, seu próprio Eu. De todas as pessoas que passaram por seu jardim, quantas realmente “viram” a amendoeira? Um artista, por ter o coração mais sensível e aberto, é capaz de ver a árvore de uma forma mais profunda que os outros: já existe uma certa comunhão natural entre ele e a árvore. O que conta é seu coração. Se seu coração não está nublado pelas falsas visões, você será capaz de entrar em comunhão com a árvore; a amendoeira estará pront a a revelar-se em sua totalidade. Ver a árvore é ver o Caminho. Quando pediram à um mestre zen que explicasse a maravilha da Realidade, ele apontou para fora dizendo: “Olhe para aquele cipreste”. Entende o que ele dizer Quang? Eu acho que sim.

PARA VIVER EM PAZ – Thich Nhat Hanh
(cortesia de Michel Seikan)