quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Só uma ferramenta para transitar no mundo


(continuação)
Após sua iluminação Buda começa a ensinar, vai até seus companheiros e ensina, faz o primeiro discurso das quatro nobres verdades: a vida é insatisfatória e sofrida, para isso existe uma causa, a qual, sendo removida, não produz mais sofrimento. Qual é a causa do sofrimento? O apego a todas as coisas, os desejos, a mente aquisitiva. Mas o que está abaixo das quatro nobres verdades?

Podemos dizer que sofremos porque temos apego. Somos apegados a amores, a roupas, a carros e quando não temos isso tudo, sofremos. Temos mil apegos. Diz-se que toda a riqueza do mundo é insuficiente para a ambição de um só homem. Por isso o homem pode procurar a felicidade em um apartamento de seis milhões de reais e fazer qualquer coisa para isso. O mundo ao seu lado pode desabar, mas ele pensa que a felicidade está ali e que qualquer manobra é legitima para acumular riqueza. Por isso se enreda em sofrimento. 

Mas qual o alicerce do apego? Quem é aquele que tem apego? O “eu”. Quem é aquele que deseja? “Eu”. Quem quer possuir pessoas, coisas e riquezas? “Eu”. Quando não houver mais “eu”, não haverá mais apego. Podemos até pensar que sofremos por sermos apegados, mas nos livramos dos apegos? Como se livrar dos apegos? Os raciocínios que nos fazem afirmar que tudo é impermanente, que tudo vai embora, a ideia de que não podemos nos agarrar a nada nem colocar nossa felicidade nas coisas, pode ser útil para amenizar a dor e nos ajudar a ser mais desapegados e felizes. Mas ainda não atingiríamos a iluminação, pois, para isso, seria necessária a eliminação de todo o “eu”, assim poderíamos engolir o universo, ser um, com todas as coisas. Não há mais, neste contexto, a noção de “meu”, “minha”, “teu”, “tua”. Não existe mais energia de desejos e apegos para produzir frustrações, expectativas e sofrimento.

O eu é uma ferramenta para transitar no mundo, útil como uma roupa, mas não somos nós mesmos.  Esse é o segredo fundamental. As motivações e sofrimentos de Buda foram como os nossos, a diferença entre ele e nós, é que ele se libertou de seu “eu”, e a partir desse momento, a única coisa que lhe interessou foi ensinar. Jamais voltou a ser príncipe, sua única missão passou a ser libertar as pessoas do sofrimento. Ele dizia: “Tudo o que eu ensino é o que leva à liberação do sofrimento”.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

A essência do despertar de Buddha


(continuação)
Todas essas considerações ocorreram a Buda. Embora ele fosse um homem rico, filho de um pequeno rei em um pequeno principado e tivesse tudo como membro da classe dominante: tinha mulheres, comida, palácio, empregados, enfim, tinha todos os confortos que  poderia ter um homem em sua posição. Mesmo tendo tudo isso, Buda se perturbou com o fato de haver velhice, doença e morte. Sabendo disso, ele se questionava sobre o significado de sua existência naquele palácio, com sua esposa, seu filho, as artes de guerra que havia aprendido. Buda era da classe Kshatriya, uma classe de guerreiros imediatamente abaixo dos Bramanes. Ele não conseguia ver significado na sua existência, em uma vida que terminava, inevitavelmente, em velhice, doença e morte, pois, sendo assim o fim, tudo o que fizermos é vão.

Foi assim que Sidharta Gautama Shakyamuni, abandonou sua família, seus pais, seu palácio, causando infelicidade a todos. Ele está então com vinte e oito anos, e vai para uma floresta procurando uma solução espiritual. Durante seis anos Shakyamuni tenta todas as técnicas de ascetismo que eram ensinadas pelos mestres iogues. Com as práticas de jejum severo, meditação e concentração, ele vai atingindo níveis cada vez mais profundos de realização psíquica, mas não vê uma solução final para as questões do sofrimento e do significado da vida; procura denodadamente, mas não encontra. Mesmo que dois mestres se sintam tão encantados com ele a ponto de o convidarem para  sucessor, ele recusa, e segue adiante. Por fim, sentindo-se derrotado fisicamente, sem energia, ele desfalece perto de um rio e uma moça chamada Sujata coloca em sua boca arroz com leite.

Ao voltar a se alimentar, Buda tem sua energia renovada. Senta-se, então, embaixo de uma figueira, que hoje é conhecida como fícus religiosus, cuja folha tem uma longa ponta , e ali fica meditando por sete dias. Ao amanhecer, quando a estrela da manhã está surgindo, Shakyamuni, de repente, acorda das ilusões, e nesse momento, torna-se O Buda, “aquele que acordou”. Ele exclama: “Que maravilhoso é! Nesse momento todos os seres e a grande Terra, junto comigo, atingem a iluminação!”

Qual a essência do grande segredo de Buda? Todas as coisas estão vazias de um “eu”. Eu não vou mais me enganar, nem uma coisa tem um eu, ninguém tem um eu, tudo é vazio de um eu. Este é o significado da palavra vacuidade, o vazio budista: nada tem um eu inerente, todas as coisas são interdependentes e interconectadas. A nossa noção de um eu - que é predominante, que todos agora, aqui sentados, sentem (eu estou aqui, eu sou, eu tenho um corpo, eu abro os olhos e vejo os outros, eu vejo o mundo) - é um engano, uma ilusão provocada pelo funcionamento de nossa mente e pela formação de nossa consciência. Essa é a essência da iluminação de Buda, todo o resto são métodos de treinamento graduais para se atingir liberação do sofrimento, melhor qualidade de vida, treinamento mental. Mas a iluminação de Buda é isso, a liberação de um eu. Enquanto não atingimos a liberação de um eu, não há a iluminação.
(continua)

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A busca do significado da existência



Vamos falar um pouco sobre as motivações originais de Buda, porque suas motivações originais são as motivações de todos nós. Quando paramos para pensar, aqueles que pensam mais profundamente se perguntam se a vida é só isso. Uma vez vi uma criança perguntar “Por que eu caí nesse mundo?” Se refletirmos um pouco, nos daremos conta de que precisamos de um sentido e de um valor para a vida; se achamos que nossa vida não tem um significado, nos sentimos perdidos e deprimidos. Parece que a depressão é um dos grandes males de nossa era, porque, repentinamente, a pessoa tem a impressão de que sua vida não tem significado e que não faz sentido viver.

Nós não podemos ser somente uma máquina de processamento de alimento, uma fábrica de adubos. Este não pode ser esse o único sentido da existência. Surge, então, a necessidade de divertir-se, de distrair-se ou de entreter-se. Estas expressões são usadas a todo o momento, como se isso desse sentido à vida. Saímos, vamos a festas, bebemos e conversamos, para nos transformarmos em pessoas alegres, e de alguma maneira, nos sentirmos vivos. Isso pode ser embriagador durante algum tempo, mas, depois, vem um grande sentimento de vazio, de solidão; nos sentimos perdidos. 

Procuramos então amores, para buscar dar significado à vida. De novo, em vez de o significado da vida estar dentro da pessoa, ele está no outro. Como procuramos em outra pessoa o significado da nossa vida, em algum momento, inevitavelmente, haverá sofrimento e infelicidade. O outro não pode ser suficiente, pois ele também tem suas demandas, e também os amores acabam, e na melhor das hipóteses, a morte nos separa.
(continua)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Terapia psicológica e o zen budismo



Pergunta – Retomando o “eu”. Tenho feito, paralelamente, um trabalho de autoconhecimento através da psicologia. Tenho lido e refletido a respeito de o que dentro desses conceitos é chamado de “eu superior” e “eu inferior”. Sem percebermos, vamos colocando máscaras, pela própria necessidade social, e ao tentar chegar a essa compreensão de o que é realmente “eu”, temos também que nos posicionar de diferentes formas e maneiras. Eu poderia me aproximar um pouco dessa explicação que o senhor está passando sobre o budismo com conceitos da psicologia?

Monge Gensho – Limitadamente. Porque o método da psicologia está baseado na noção do eu, sem jamais considerar o vazio inerente a todos e o fato de que todas as coisas são vazias de um “eu”. A psicologia opera tentando adaptar o homem e fazê-lo funcionar melhor nesse mundo. O budismo não tem esse método.

O budismo descarta todos os métodos filosóficos e mergulha numa experiência direta, mas isso não significa que exista uma oposição entre psicologia e budismo. Seus objetivos é que são muito diferentes. Os objetivos da psicologia são de integração, adaptação, compreensão, classificação, através de uma mente classificatória e discriminativa. O budismo quer descartar esse tipo de mente, descartar uma mente conceitual, pois quer mergulhar numa experiência direta com a unidade. Se você quiser usar palavras cristãs, poderíamos dizer que o budismo deseja que o homem tenha experiência divina direta. Podemos dizer, então, que a psicologia opera até determinado nível com determinado objetivo e o budismo corre em paralelo com outro objetivo muito diferente, a iluminação. Não interessa ao budismo adaptar o homem ao mundo, pelo contrário, ele pretende transformar o homem num outro ser, internamente num outro indivíduo - que aos olhos do mundo pode parecer perfeitamente louco. Tenho consciência de que muitas pessoas que me conheceram no passado como executivo de empresa, hoje têm certeza de que enlouqueci. No nosso mundo moderno já existe um entendimento disso, não é a mesma coisa de cinquenta anos atrás.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Um pragmatismo dialético de métodos psicológicos



Pergunta – Existe algo que não seja um teste?

Monge Gensho – Que não seja um teste, você quer dizer, que não seja um método? Tudo no Zen é um método, tudo no budismo é um método. Por isso é difícil dizer que o budismo seja uma religião ou uma filosofia.



Pergunta – Na nossa vida diária tudo tende a ser um teste. A gente vive para as experiências, não é?

Monge Gensho – Se você experimenta e testa, você pode saber o que funciona bem para você. Mas não precisa acreditar que o que é bom para você é bom para os outros.

Pergunta – Essa é então uma existência ilusória, um teste ilusório?

Monge Gensho – Não, nossa existência não é uma ilusão, nossa existência é uma existência. As coisas são como são. Não se trata de um teste, não existe ninguém lá fora nos testando. Não existe nenhuma organização lá fora fazendo um teste conosco, não é assim. Ilusão é o eu.

Pergunta – Então, somos nós mesmos testando nós mesmos?

Monge Gensho – Se você quiser... Eu prefiro só viver.

Pergunta – Mas então, como chamamos o budismo? Não é religião, não é filosofia, como o definimos então?

Monge Gensho – Edward Conze deu uma declaração interessante: “O budismo é um pragmatismo dialético de métodos psicológicos”. Pragmatismo, porque é prático. Dialético, porque seu método é discursivo e argumentativo. Métodos psicológicos, porque todos os métodos de prática do Zen são formas que têm efeitos psicológicos. O zazen é assim, um método para o aumento do conhecimento sobre nós mesmos, por exemplo, um método para descartarmos a ilusão de um eu separado de tudo. Chamar o budismo de religião é tentar enquadrar o budismo dentro de um conceito bastante ocidental.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Zen em Goiânia



ZEN BUDISMO em Goiânia, um novo grupo de estudos inicia dia 31 de outubro. Começaremos com meditações semanais, que acontecerão todas as QUARTAS FEIRAS ÀS 20:00 HS. O início será dia 31 de outubro. As meditações serão abertas a todos os interessados, o endereço será:

Rua 56, nº 18, esquina com Rua 58, 1º andar, Jardim Goiás (É no início da Rua lateral ao Parque Falmboyant). A coordenação é de Monge Genshô.

http://zengoias.blogspot.com.br/2012/10/novo-espaco-para-sangha-de-goiania.html

Uma fantasia não é você



Pergunta – Chegará o dia em que todos alcançarão a iluminação?

Monge Gensho – Cada universo um dia findará e então, simplesmente, um novo dia cósmico acabará iniciando. Como citei no início, tudo é cíclico. 

Pergunta – Fiquei meio confusa, gostaria que o senhor desse um exemplo prático sobre a eliminação do “eu” para poder ter uma vida equilibrada e sobre termos que retornar diversas vezes para poder ajudar as outras pessoas.

Monge Gensho - Mesmo que o “eu” seja ilusório, você não consegue trabalhar e operar no mundo sem usar seu “eu”. O “eu” é uma ferramenta. O problema é que você acredita nele. Por exemplo, você tem uma echarpe no pescoço e a usa para uma determinada finalidade hoje, por aparência. Ao chegar em casa, você a tira e a coloca no guarda-roupa. Apesar de tê-la usado para sua aparência, ela é você? Não, não é. O “eu” também é assim, também é uma aparência da qual você precisa. Se você dirige uma empresa, tem que usar de autoridade, tem que afirmar: “Eu estou dizendo para fazer assim!”. Não adianta reunir as pessoas e dizer, “O universo deseja que vocês ajam...”. É preciso dizer: “Eu quero que façam dessa forma, caso contrário, não poderemos trabalhar juntos”. Então você tem que usar o “eu”. O “eu” é uma ferramenta para ser usada quando for útil. De nada adianta chegar em casa, entrar no box do banheiro e dizer ao chuveiro, “Eu ordeno que você verta água!” pelo menos atualmente.

Quando o “eu” não é útil, não adianta. Isso me lembra uma piada que meu filho me contou sobre Chuck Norris. Existem muitas piadas sobre Chuck Norris; uma delas diz que ele não faz flexão de braços, ele empurra a Terra. Ou, Chuck Norris não precisa abrir a torneira, ele encara o chuveiro até ele chorar. Isso é acreditar muito no seu “eu”. Eu (Chuck Norris) não faço flexão de braços, eu empurro a Terra. É uma piada muito interessante, uma piada sobre um grande “eu”. Então, o “eu” é útil, é uma ferramenta para ser usada, mas é uma fantasia. Eu estou usando roupas de monge, eu sou monge, e digo, “Me chamem Monge”. E as pessoas dizem “Senhor”, e temos toda uma etiqueta. Mas eu sou monge, ou monge é uma fantasia útil para a prática do Zen? Monge é uma fantasia útil para a prática do Zen cheia de profundos significados, com seus mantos, cabeças raspadas, tudo isso formando uma metodologia para a prática. Mas ela toda é funcional, pois todo o método Zen é um funcionamento. Trata-se de um método, não de uma verdade. É apenas um método útil, muito efetivo, muito bem testado: mais de dois mil anos de teste.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Vento que nos leva, fogo que se extingue



Pergunta – O carma é uma energia?

Monge Gensho – Carma é uma palavra que significa ação. Vipaka significa frutos, na verdade em sânscrito dizia-se carma vipaka, os frutos da ação. Quando você faz uma ação intencional ela cria carma e esse carma adere à sua identidade. Mas é ele, o conjunto de movimentos que você tem, que faz com que sua onda permaneça. O seu redemoinho gira em razão de seus desejos, apegos e impulsos. Esse é seu redemoinho. Por isso, nirvana: Nir, não, vana, ventos. Nirvana quer dizer “sem ventos”. Sem os ventos das paixões. Outra tradução é “fogo extinto”. Quando se extinguirem os fogos das paixões, esse fogo extinto, não queima mais.

Pergunta – No budismo, além da meditação, existe outra prática que a gente possa fazer para manter o equilíbrio?

Monge Gensho – Muitas. Mas a meditação é a principal, pois ela cria estabilidade e um conhecimento de sua mente. Então, você pode retornar a essa mente do zazen quando o mundo criar movimento. No zazen, se você estiver realmente, como um espelho, refletindo todas as coisas, sem fazer quaisquer considerações, sem passado ou visitas ao futuro, você não está produzindo carma. O zazen corta o carma. Se você conseguir, em algum momento de sua vida, através de plena atenção, da prática das ações, da prática do caminho óctuplo, que são as oito práticas ensinadas por Buda - ação correta, fala correta, meio de vida correto etc., se você fizer essas práticas, elas extinguirão seu fogo. Haverá, em primeiro lugar, mais calma e serenidade, o que, depois, poderá conduzir você cada vez mais profundamente, até um grande esclarecimento. 

Quando você vir sua verdadeira natureza, quando vir, com clareza, a vacuidade de todas as coisas, quando enxergar o vazio de seu próprio eu, você não poderá mais ser ofendido. Se você vir tudo isso, ainda sentirá compaixão por todos os seres, porque todos os seres se percebem como “um”. Sendo assim, você será incapaz de fazer coisas que causem sofrimento, e isso se chama mente de Bodhicitta. Se você criar esse tipo de mente e fizer esse tipo de prática, vindo a alcançar um grande esclarecimento, chamaremos esse esclarecimento de iluminação, e essa iluminação é o fim de toda dor. Se você extinguir as energias cármicas que movem você, seu redemoinho cessará e você não será obrigado a voltar, a menos, evidentemente, que queira. Mas só existe um motivo para querer, que é a própria mente de Bodhicitta, compaixão pelo pesadelo dos outros seres, o desejo de acordá-los. Por isso, a palavra buda vem da raiz bud, “desperto”, e Buda significa “aquele que acordou”. Se você acordar, acordará do sonho e desejará acordar do sonho os outros que gemem e sofrem.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Redemoinho como analogia



Pergunta – Fazendo uma comparação com o espiritismo: quando morremos, o que acontece com nossa “alma” ou “espírito” até que tenhamos outro corpo?

Monge Gensho – No budismo não falamos em almas nem em espíritos. Não falamos em uma existência corpórea separada, o que seria nós mesmos, separados de um corpo. Essa é uma noção grandemente originária no ocidente do Platonismo. Mas a noção de uma alma separada do corpo, por exemplo, não é uma noção existente no judaísmo primitivo. No Cristianismo, vem por influência grega e o Kardecismo é um herdeiro dessa tradição. É um sincretismo entre idéias hindus, budistas e cristãs. Na verdade, o budismo apenas declara que o carma, que é um movimento no universo, provoca nascimento. Mas não fala de uma alma que conserva seu “eu”, embora possamos encontrar conceitos um pouco mais próximos disso no Bardo, que é o ensinamento pós-morte do livro Tibetano dos mortos. Ele se aproxima dessa noção de uma consciência, de algo que está carregando, de uma entidade que irá renascer. Mas a explicação melhor dentro do Zen seria: olhe para um redemoinho, ele tem movimento, energia e forma e quando você olha para ele, vê um eixo em torno do qual tudo gira, mas esse eixo existe, é algo? Não. O movimento por si mesmo cria a noção de um eixo, mas não é necessário que o eixo exista para que algo seja apegado a ele. É o próprio movimento que provoca o renascimento.

Pergunta – Sei que isso é limitado, precisamos criar uma imagem para podermos entender, mas seria como ondas no oceano?

Monge Gensho – A onda continua, mas a água não se move com a onda. As ondas passam através da água. Quando eu falo o ar vibra, há ondas sonoras, mas o ar não se move para que o som chegue até seus ouvidos, só há vibração, que é pura energia. Não se moveu nada essencialmente, no entanto, o som chegou até aí. Acho que o redemoinho é uma imagem muito boa, porque permite a idéia de uma entidade e coloca tudo num movimento. Você, agindo na sua vida, provoca movimento. Há movimento, há formas de energia, impulsos, desejos e apegos - esses formam o carma. O que renasce? O que provoca o renascimento? O carma.

O carma tem um “eu”? Não. O carma provoca um nascimento e o nascimento diz a si mesmo, “eu sou”. Então, é o carma que provoca o surgimento de identidades, não são as identidades que carregam carmas. Essa é a essência desse pensamento, que é um pouco mais sutil. É mais fácil pensar num espírito que carrega uma mochila de carmas nas costas, não é verdade? Mas não é assim. É o carma que provoca o surgimento de identidades. Nós somos identidades que surgiram por causa de carmas, nossas identidades são ilusórias. Somos um sonho.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Presos a repetição







Pergunta – Sobre a necessidade de dissolver o eu para que não retornarmos, mesmo persistindo alguma ignorância, seria possível não voltar?


Monge Gensho – Porque você, ao ter essa noção de um eu e ao manter a coesão de todas as coisas que estão agregadas a um eu (seus desejos e impulsos), por causa disso, por causa de seu apego ao seu eu, você não consegue evitar querer manifestá-lo, e o instrumento de nascer, ter um corpo e viver, é muito atraente. Já que você gosta das coisas da vida - comer, fazer amor, ter filhos, possuir coisas -, naturalmente você se encaminha para um nascimento. Por estar muito apegado a essas coisas, você não consegue evitar tudo isso.

Assim, é muito difícil sair daqui. As pessoas que pensam que podem sair daqui através da morte, por exemplo, aquelas que pensam que a vida é muito difícil e sofrida e se suicidam, tudo o que elas conseguem é repetir outra vida exatamente igual e ainda com um impulso suicida. Não existe nenhuma saída fácil. Uma vez li um livro, (Shantaram) sobre um homem, que metido num grande problema de sofrimento, na Índia, vai para uma casa onde lhe injetam drogas na veia. Ele vive, então, mergulhado num sonho, anestesiado pelas drogas, porém, isso não é solução, pois ele continua nesse mundo e dele não consegue sair. Mesmo que pareça, durante o momento em que está drogado, que ele saiu dos problemas, está sempre retornando. De certa maneira, é como se estivéssemos prisioneiros dessa repetição. Aliás, examinem suas vidas, vejam se não cometeram os mesmos erros, repetidas vezes, também.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Como bolhas



Todo o universo tem um surgimento cíclico dentro da cosmologia budista. Quando surge um universo, dentro dele há naturais irregularidades, as quais acabam provocando fenômenos que, por sua vez, num crescendo de complexidade, fazem surgir vidas. Essas vidas, quando atingem consciência, dizem a si mesmas: “eu sou”.

Mas o que são os fenômenos? Um bom exemplo são as bolhas dentro de uma garrafa de champanhe. Dentro de uma garrafa de champanhe há gás carbônico dissolvido no líquido, e quando diminuímos a pressão, tirando a rolha, formam-se bolhas. Essas bolhas surgem, se expandem e formam espuma, mas as bolhas em si, quando nós as olhamos, são fenômenos, mas são vazios de um eu. Esse conceito, “vazio de um eu” é muito importante. Vamos examinar o que é a bolha.

A bolha é gás carbônico dentro da água. Quando a olhamos, vemos sua superfície, como se tivesse um invólucro. É como se ela fosse algo, no entanto, ela nada mais é que um fenômeno provocado pela interação entre o gás expandido dentro do líquido, o qual tem uma forma, surge, cresce e desaparece, ou seja, deixa de existir como fenômeno. Podemos imaginar que uma bolha pense, “eu sou independente das outras bolhas, sou separada, sou algo, eu existo”. Mas ela é interdependente, interconectada com todo o gás e todo líquido. Ela é dependente das outras coisas para existir. Nós também somos assim, nós somos fenômenos, somos formas extremamente mais complexas do que uma bolha numa garrafa de champanhe, mas somos fenômenos no universo. No entanto, dizemos a nós mesmos, “eu sou”.

O que o budismo essencialmente ensina é que isso é uma ilusão, pois não poderíamos dizer “eu sou”, visto serem todos os fenômenos no universo vazios de um eu. Não há um eu inerente. Esse eu, que acreditamos tão sólido e nítido, é uma ilusão proporcionada pelo funcionamento da nossa mente. Assim como existe um funcionamento do gás com o líquido na garrafa que faz com que a bolha pareça ter uma existência própria, nós, por pensarmos, por termos memória, por conceituarmos, percebermos, sentirmos, por termos formações mentais e consciência, acreditamos que temos um eu. Esse “eu” é essencialmente ilusório. Se não escaparmos desse “eu” ilusório, não conseguiremos perceber nossa verdadeira natureza nem nos integrar ao universo como um todo. Ficamos a nos imaginar separados do todo.

 Essa ilusão, ignorância fundamental, provoca algo nessa consciência que faz com que ela continue se manifestando repetidas vezes como fenômeno, com as mesmas características e impulsos, conservando-os e congelando-os nas suas existências. Por isso dizemos que existe um renascimento, uma “re-manifestação” cármica no universo. Mas essa “re-manifestação” nada mais é do que a permanência da ignorância: ignoramos que o eu é ilusão. Essa ignorância é que faz com que surja o nascimento e todas suas consequências, como a velhice, a doença, o sofrimento e a morte.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Há mais bondade que maldade no mundo

Florianópolis, retiro em out/2012 liderado pelo Superior da América do Sul, Mestre Saikawa Roshi
(continuação)
Aluno: – Vejo o mal nos noticiários.

Monge Genshô: – Notícias são uma visão distorcida do mundo. Por que não aparece no Jornal Nacional: “Pai carinhoso janta hoje com a família e faz carinho no rosto de seu filho”? Só aparecem as notícias que chocam porque são essas as notícias que as pessoas querem ver. Você não vê nenhuma notícia da Suíça hoje, só vê notícias a respeito da Síria, porque lá estão havendo bombardeios e mortes. Você pode estar certo, o mundo não funcionaria se um por cento das pessoas fossem más. Se um por cento das pessoas que almoçassem no restaurante saíssem sem pagar, isso seria um problema. Mas isso não acontece, pois quando alguém chega ao restaurante e se dá conta de que esqueceu cartão, não tem problema. Dizemos a ela que volte outro dia e pague. E ela volta. 
Porque a maioria das pessoas é boa e quer que o mundo seja bom. A maioria dos pais é amoroso. Há pessoas más e cruéis no mundo? Há. Mas, felizmente, são minoria. O problema é que fazem muito barulho e aparecem demais. Nós funcionamos na base da confiança. Se alguém pensa: “mas não dá para confiar nas pessoas”, eu digo: “claro que dá”. Na realidade, você entra em qualquer lugar, come e paga depois. Se as pessoas fossem inconfiáveis, pagar-se-ia antes. Você vai ao banco, entrega o dinheiro, o caixa conta e a operação é feita. E se ele colocasse o dinheiro na gaveta e dissesse, “O que o senhor deseja?” Você lhe diria: “como assim, acabei de lhe dar dinheiro”, ao que ele poderia responder: “o senhor não me deu nada”.

 Você confia o tempo todo nos outros, o mundo funciona na base da confiança. As pessoas fazem coisas boas o tempo todo. Há pessoas que vêm aqui e começam a limpar alguma coisa, fazem uma faxina, mas nunca perguntam “O que eu ganho?”. Tem pessoas que colocam uma doação na caixa, a gente não sabe quem foi, mas ela sabe que o aluguel tem que ser pago, a luz tem que ser paga, a água tem que ser paga. Tem pessoas que fazem com que esse lugar exista. Seria impossível de existir se não houvesse pessoas que doam algo para os outros.

Então, o mundo não é mau, a maldade é exceção. Ainda bem. Você só precisa olhar. Já foi muito pior. Cem anos atrás, no inicio do século vinte, nós tivemos no Brasil a revolta da chibata na marinha, porque os marinheiros eram tratados a chicotadas. Tínhamos escravatura até 1888, as pessoas faziam festa quando uma guerra era declarada. Na primeira guerra mundial o povo saía às ruas eufórico. Aconteceu na Argentina, na guerra das Malvinas, o povo nas ruas festejando porque haviam declarado guerra contra a Inglaterra. Já mudamos e continuamos a mudar aos poucos. Mas se você olhar para o passado, verá coisas que as pessoas faziam porque eram consideradas normais - em alguns lugares do mundo ainda são, não é? No Irã, por exemplo, tenho um conhecido que esteve lá recentemente e disse que é comum passar por uma praça e encontrar alguém enforcado. Eles enforcam os homossexuais, enforcam alguém que tenha dito uma blasfêmia, etc. Fico feliz em saber que o Brasil mudou de posição a respeito do Irã, pois para mim era vergonhoso. Escrevemos um texto a esse respeito, li um discurso criticando o Itamarati escrito por participantes do Colegiado Buddhista Brasileiro em São Paulo. Penso que estejamos mudando de posição, e isso é melhor, pois não podemos pôr interesses comerciais ou quaisquer outros na frente de tudo, e fechar os olhos para a maldade. Se olharmos bem, veremos que há bondade no mundo.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

As dores físicas e as afetivas



Aluno: – Tive câncer no rim. Eu tinha dores terríveis e era alérgico à morfina. Isso me fez evoluir um pouco com relação à dor física por já ter tido dores terríveis. Por pior que seja a dor física, não se compara à dor emocional.

Monge Genshô: - Concordo com você, mas a dor física pode causar tamanho desconforto que a pessoa sinta vontade de desistir. Já ouvi isso de pessoas com muita dor. Chega um momento em que a pessoa perde o ânimo, isso, na verdade, é muito mental. Se a pessoa conseguir manter sua vontade de viver, poderá vencer.
 Nos campos de concentração, testemunhas contam que sabiam que uma pessoa iria morrer porque ela desistia, perdia a esperança e quando perdia a esperança, morria. Se a pessoa consegue manter forte energia e consegue enxergar seu corpo como algo temporário, isso é maravilhoso, pois pode lhe dar grande liberdade. Temos muitas histórias, como a de monges budistas que se imolaram no fogo em posição de zazen e assim morreram. Para isso é preciso esquecer o corpo e tornar-se um com o fogo. Queimar junto. Não existe um conflito entre as duas coisas. 
Mas dores afetivas são muito mais difíceis. As coisas materiais - e aí se inclui o corpo - são mais fáceis. Você pode perdê-las, como pode perder um braço, por exemplo. Se você falar com um pai, ele daria seu braço para o filho com facilidade. Para um pai, é fácil morrer pelo filho. Isso é muito interessante, embora se possa dizer que um filho também seja o prolongamento de um eu.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Para sermos felizes



Pergunta: – (...) E se a pessoa não se controla e provoca um turbilhão porque não soube ficar suficientemente quieta no momento para poder ver o que havia de bom na situação. Ela gera um carma ruim, isso é provocado pelo ego. O que fazer quando esse tipo de situação ocorre?

Monge Genshô: - Você sempre pode parar, respirar, pedir desculpas. Você pode se dar conta e pode dizer, “Estou muito nervoso, estou falando coisas que não deveria, desculpe-me”. Você sempre pode parar, sempre pode dar-se conta. Se você praticar zazen tempo suficiente, quando acontecer alguma coisa que possa criar uma situação desarmoniosa, você pode olhar para ela e ver como ela realmente é, e você já se acostuma a ela. Por isso eu digo que as coisas materiais são até fáceis, se você se acostumar a pensar: “Ah, quebrou um copo, e daí, é só um copo”. O que a gente faz quando se quebra um copo? Junta os cacos. É completamente errado repreender uma criança apenas porque derrubou algo da mesa e quebrou. Os adultos fazem a mesma coisa e ninguém grita com eles. O que é certo? Ensinar. Se a criança quebra algo, ensinamos a ela como juntar os cacos: pegamos a pazinha e vamos juntar os cacos quebrados. Mas você não vai ficar brabo? As coisas quebram. Se você ficar chateado porque as coisas quebram, você irá perder de vista a vida. Não vale a pena. Não vale a pena nenhum desespero por coisas materiais. 
É claro que a gente pode se preocupar, pois às vezes chega-se a um ponto em que as coisas ficam críticas. Por exemplo, se não pagarmos a conta da luz, a eletricidade será cortada. Thomas Edison tinha um grande laboratório com, mais ou menos, dez mil patentes. Um dia o laboratório pegou fogo. Então, ele acordou toda a família e a levou para verem o laboratório arder em chamas. Então sua mulher perguntou-lhe: “Mas por que você está assim, se seu laboratório está pegando fogo?”. E ele respondeu, “Vocês nunca verão uma fogueira como essa!” Como ele já estava imaginando um novo e melhor laboratório, evitando os mesmos erros do primeiro, ele transformou aquilo em alegria. As coisas podem ser vistas de formas diferentes. Claro, com coisas materiais é bem mais fácil.

Aluno: – Pode ser visto como um incentivo, por exemplo, no laboratório velho era difícil para ele progredir. Estava atrapalhando.

Monge Genshô: – Isso. Mas se ele dissesse: “Como eu gosto dessas coisas, elas não podem ser perdidas”, então ele sofreria. Mas já temos sofrimentos legítimos muito grandes na vida. Às vezes surgem pessoas com câncer - isso é sofrimento de verdade, porque dinheiro não resolve – ou com outros problemas que o dinheiro não resolve. Uma boa maneira de ver as coisas é se perguntando se o dinheiro resolve. Se a resposta for afirmativa, então não é problema de verdade. Problema de verdade é quando a gente diz “não, dinheiro não resolve”. Então a pessoa chora e o que resta ao monge é chorar junto, porque, nesse caso, é sofrimento de verdade e não tem uma solução fácil, porque precisaria esquecer a própria vida para superar aquilo e somos pessoas frágeis.

Então, devemos deixar o sofrimento para essas coisas realmente importantes, realmente definitivas. Hoje uma atriz se jogou de um edifício em são Paulo. Em janeiro o noivo dela havia se suicidado assim, e ela não conseguiu superar esse acontecimento e fez a mesma coisa. Mesmo que se reconheça o sofrimento e a dificuldade disso, tal solução não é correta, porque mesmo o sofrimento afetivo passa. O tempo passa e o sofrimento passa junto. 
Minha mãe perdeu vinte irmãos, o pai e a mãe dela, dois maridos e quatro filhos. Ela enterrou todos eles. Ela acreditava na vida, pois morreu com noventa e sete anos. Mesmo depois de morrerem os quatro filhos, ela tentou de novo e teve quatro filhos que sobreviveram. E ela se lembrava destes; tinha memória do passado, mas a felicidade da sobrevivência era suficiente para mantê-la feliz. Ela sempre dizia: “sou muito feliz!”. É uma questão de como você vê as coisas. Se a atriz tivesse deixado passar um pouco mais o tempo, talvez tivesse encontrado um novo amor, talvez tivesse reconstruído sua vida. Não existe uma justificativa para a desistência. O que aconteceu é memória, mas ela não nos serve. Por isso, quando sentamos em zazen temos que jogar fora a memória. Para ficarmos felizes não podemos carregar memórias negativas.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Sentamos para esquecer


(continuação)
Aluno: - Mas é difícil esquecer de si mesmo.

Monge Gesnhô: – Muito. A primeira coisa para superarmos esse problema é sentar em zazen. Uma vez sentados, não devemos deixar que nossa mente faça comentários. Primeiro, sentamos para meditar. Mas para que? Para meditar sobre nós mesmos? Sobre nossa vida? Não. Sentamos em zazen para esquecer. Esquecer nosso passado e nosso futuro. Se treinarmos nossa mente para isso, começaremos a nos tornar livres. É por isso que fazemos zazen. Será difícil alguém aqui achar um sofrimento do qual não possa dizer, “vem do eu”. Qualquer sofrimento vem do eu, os sofrimentos dos outros que nos doem, vêm do eu, porque somos apegados a eles. O sofrimento do eu que se sente ofendido, vem da crença no eu. Tudo vem do eu, pois como temos um eu, ele pode ser ofendido, se não houvesse um eu, não poderia me sentir ofendido. Algumas coisas são fáceis, bem fáceis. Se esquecermos que as coisas são nossas, não tem problema que elas sejam danificadas, não é isso que é mais importante. 
Ontem - acho que isso está se tornando tradição - bateram no meu carro novamente. Novamente uma mulher. Saí do carro e, naturalmente, fiquei com pena dela. Já estava chorando, apavorada, “como irei pagar, são dois carros, ainda por cima!”, o carro dela não tinha seguro. Tentei tratá-la o melhor possível. Depois de alguma conversa com o outro carro envolvido, resolvemos que o carro do meio assumiria a culpa e tudo ficou resolvido. Então, de noite ela me ligou para agradecer a forma como tinha sido tratada. A grande pergunta é: “Porque isso é possível?” Porque o carro não tem importância. Mas isso é fácil, o carro não tem importância. “Ah, mas bati no seu carro e não tenho como pagar”. Bom se você não tem como pagar, uma coisa é certa, não vai pagar. Assim, esse problema já está resolvido.

Aluno: – Isso é bem difícil mesmo, pois toda pessoa que entra num carro se transforma.

Monge Genshô: – Mas, veja bem, o outro senhor cujo carro estava no meio - ela bateu atrás do dele e o dele bateu no meu - ele também foi muito gentil. Então, fomos todos à delegacia no dia seguinte para registrar a ocorrência num clima de grande amizade. 
A gente nunca sabe como as histórias irão terminar, pode uma coisa que parece muito ruim se transformar em algo muito bom. Quando acontece algo ruim, devemos parar e procurar onde está o lado maravilhoso daquela história. Pode estar na nossa frente e não vermos. Uma vez, eu estava no Paraná trabalhando em uma consultoria e o avião fez um pouso de emergência. Estávamos todos no aeroporto muito chateados, pois teríamos que esperar muito tempo até que o problema fosse solucionado. Olhei em volta e pensei, “Onde estará a boa sorte dessa situação?” Então observei um senhor. Aproximei-me dele e começamos a conversar. A empresa aérea pagou um jantar para todos e fomos juntos, conversando. Para resumir, ele era diretor de uma grande empresa de franquias e acabou me contratando para fazer uma consultoria, pela qual recebi bom pagamento. Assim, o que era uma situação de grande chateação e desconforto, transformou-se numa ótima oportunidade.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Esquecer de si mesmo


(continuação)
Morri para mim mesmo, nada importa. Se nada importa, se o que os outros dizem não importa, se não existe nada que possa me ferir, então eu superei o ego. Se o professor no zen nos corrige ou aponta um erro, não nos defendemos, não nos justificamos, apenas fazemos gasshô e agradecemos. Mas isso é muito difícil. Por isso pedimos, “sente-se em zazen e abandone-se, esqueça o passado, esqueça o futuro, esqueça de si mesmo; se esquecer de si mesmo, então estará livre”.

 Enquanto houver comentários discriminativos - “gosto disso e não daquilo” - há um ego se manifestando. “Eu prefiro isso”, é um ego falando.  “Não gostei da atitude de Fulano”, é um ego falando. “Eu gostei do elogio que o professor me fez”, é o ego falando. Esse ego é nossa ilusão, nossa prisão fundamental. Por causa dele nós estamos aqui, presos em corpos e por causa dele nós nascemos e morremos. 

O ensinamento de Buda para escapar do sofrimento e escapar de tudo, de velhice, doença e morte, está baseado principalmente em morrer para si mesmo. Morrer para seu próprio ego, morrer para sua vaidade, é para isso que treinamos. Não é para sermos importantes, sermos iluminados, alcançarmos algo, sermos melhores que outros, não é para nada disso. É para nos esquecermos de nós mesmos. Enquanto pensarmos, “eu sou melhor”, estamos presos.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O Lugar da harmonia

       Retiro zen, sesshin, na Sangha de Florianópolis, Morro das Pedras, setembro 2012

Quando dizemos na cerimônia, “tomo refúgio na sangha o lugar da harmonia”, isso é de fato o que a Sangha deveria ser: o lugar da harmonia. Mas a Sangha é feita de pessoas e as pessoas são cheias de egos e defeitos e por causa disso, produzem atrito. Dizemos, então, que a Sangha funciona como um pilão de arroz: batemos no arroz e porque um arrasta no outro, perde a casca. Nós, na Sangha, sofremos atritos; porque sofremos atritos, perdemos nossa casca e porque perdemos nossa casca, podemos nos tornar puros. A Sangha não é o lugar onde a harmonia existe, mas é o lugar onde buscamos ficar de tal forma que a harmonia se crie. Como fazemos isso?

Os preceitos são cheios de regras a esse respeito. Já nos dezesseis primeiros preceitos, existe um que diz: “Não se eleve”, principalmente “não se eleve rebaixando os outros”. Então, quando vemos defeitos nos outros e citamos esses defeitos, automaticamente estamos dizendo que não temos os defeitos apontados no outro. Na verdade, a prática budista significa, para esse preceito, que “eu não vejo defeitos nos outros, sei das dificuldades que as outras pessoas têm, mas não posso ser cego para as dificuldades que tenho”. Por causa disso, quando encontro defeito em alguém, devo procurar me concentrar nas qualidades dessa pessoa e imediatamente devo citá-las: “tal pessoa tem  dificuldades, porém, tem todas essas outras qualidades”. Devemos apontar suas virtudes, virtudes que muitas vezes nós mesmos não temos.

O que mais nos atrapalha, a todo momento, é termos um ego, uma vaidade e uma noção de separação. Estou separado dos outros, por causa disso, eu penso que ajo melhor do que os outros. Devo me calar a respeito de todas essas coisas e devo procurar fazer com que as pessoas manifestem suas qualidades. Sobre minhas qualidades devo me calar. Sobre minhas dificuldades, também devo me calar, pois sei que tenho dificuldades e não é útil ficar falando sobre elas, apenas devo tentar me corrigir. O melhor caminho é o silêncio. Calar e agir. Não devemos enxergar, quando os outros apontam alguma dificuldade nossa, um ataque ao nosso ego.

Nesse momento, devemos nos perguntar: “Quem se incomodou?” “Quem se importa com isso?” Meu orgulho e minha vaidade se importam com isso, por isso me importo e não quero ser criticado. Meu orgulho e minha vaidade são meus grandes inimigos, pois são a manifestação do meu ego, portanto, eles fazem a separação. Se me sinto separado, então, estou prisioneiro do ego, se estou prisioneiro do ego, sou prisioneiro de nascimento e morte. Eu nasço e morro porque tenho um ego. Se eu morrer para mim mesmo, não existe mais ninguém para morrer, me livro da morte. Para perder o medo da morte, devemos perder o medo de ter um ego ferido e um ego que desaparece. Para nos livrarmos da morte, temos que morrer agora. Agora.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Além de abranger todas as coisas


(continuação)
ainda não é despertar completo...

Aluno – Porque pode haver um apego a esse estado, um desejo de continuar nesse estado de prazer, talvez?

Monge Gensho – Correto, mas tem um ponto importante aí que eu gostaria de ouvir.

Aluno – Porque ele mantém a noção de que existe um eu?

Monge Gensho – Exatamente, porque ele mantém a noção de que existe um eu. É um eu profundamente expandido, abrange todo o universo e todos os seres, abrange toda a forma, parece uma magnífica iluminação, porque a dor de todos os seres é a dor dele, a felicidade de todos os seres é sua felicidade, ele abrangeu tudo, mas ainda não é iluminação completa porque existe a noção de uma identidade.
 Então mais um passo. Esse passo está além da noção da identidade com tudo. Essa identidade, esse apego - vejam, é um grande e magnífico apego, eu o universo inteiro, é bem um grande eu. É necessário andar mais onde até mesmo essa noção de “existo ou não existo”, de “abranjo todas as coisas”, some. Em termos de prática do zazen, quando sentamos para meditar, surgem pensamentos sem cessar, como se fosse um mendigo que batesse à nossa porta sem parar, um mendigo bêbado que pedisse: “Por favor, preciso disso, preciso”. Agarra-nos pela manga e nos puxa todo o tempo. Ele está sempre nos importunando, às vezes conseguimos nos livrar dele e temos um momento de paz, mas ele retorna. Um dia nos voltamos para ele e ele não está mais lá.

Decupada da gravação por Ápio San e revisada por Eleonara San.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Declaração Pública do Colegiado Buddhista Brasileiro



Declaração Pública




O Colegiado Budista Brasileiro, entidade que congrega as principais lideranças budistas brasileiras, vem a público lamentar profundamente e repudiar veementemente a agressão violenta sofrida pela minoria budista do Bangladesh por parte de militantes extremistas islâmicos, da qual resultou a destruição pelo fogo de vários templos com seus objetos de culto e símbolos sagrados. Os budistas não respondem ódio com ódio e violência com violência, eles se limitam a lamentar compassivamente os atos insanos nascidos da ignorância e do egoísmo do ser humano e a lembrar as sábias palavras do imperador budista indiano Açoka, que proclamava que perseguir e agredir a religião alheia acarreta danos para nossa própria religião.

Com efeito, não é através dessas atitudes violentas geradas por uma minoria de extremistas que a religião muçulmana há de angariar o respeito e a consideração a que faz jus por parte da comunidade internacional, assim pedimos que os muçulmanos de bem repudiem publicamente as ações dos extremistas. Os budistas brasileiros pedem vênia aos extremistas muçulmanos para lembrar-lhes que o próprio Alcorão Sagrado ensina que "não há imposição quanto à religião" (2:256) e para recordar-lhes as belíssimas palavras com que o grande místico islâmico Ibn 'Arabi de Múrcia (1165- 1240) celebrou sua adesão ao Amor Universal que transcende todas as diferenças confessionais e sectárias:




"Oh! Maravilha-te! É um jardim entre as chamas!

Meu coração tornou-se capaz de todas as formas:

é um pasto para as gazelas, um convento para monges cristãos,

Um templo para ídolos, e a Caaba dos peregrinos,

E as tábuas da Torá e o livro do Alcorão.

Sigo a religião do Amor: não importa o rumo que tomam

os camelos do Amor, essa é minha religião e minha fé."



Colegiado Buddhista Brasileiro

Diretoria


Presidente Rev. Shaku Haku-Shin

Rev. Meihô Genshô

Dhammacariya Dhanapala

Shaku Hondaku

Claudio Miklos Kômyô


Presidente do Conselho do CBB


Rev. Prof. Dr. Ricardo Mário Gonçalves


Conselho

Lama Chagdud Khadro

Rev. Monge Rinchen Khienrab

Rev. Heyla Downey

Ven. Uttaranyana Sayadaw

Rev. Shaku Sogyo

Rev. Monja Sinceridade

Rev. Coen Sensei


Aliam-se a declaração:

- Choyu Otani (Mestres das Missões da Ordem Otani-ha)

- Rinban Kensho Kikuchi (Ministro Superior da Ordem Otani-ha no Brasil)

- Rev. Ricardo Mario Gonçalves

- Rev. Hiroshi Matsuda

- Rev. Massaharu Suguiura

- Rev. Severino Sales Silva

- Rev. Leninha Brasileiro

- Rev. Hiroyuki Higashi

- Rev. Tsuyami Ueno

- Rev. Tadao Sawanaka

- Rev. Yassuo Nakashima

- Rev. Mitsue Nakashima

- Rev. Meishi Nakazawa

- Rev. Shu Izuhara

- Rev. Linda Morimoto

- Rev. Yaeko Togawa

- Rev. Minako Iso

- Rev. Kasuro Nanao

- Rev. Margarida Nakaoka

- Yuka Kikuchi

- Rev. Seigo Nawa

- Rev. Isshin Sensei

(Todos que o desejarem podem subscrevê-la e divulga-la preservando seus termos originais)

Um com o todo é iluminação?


(continuação)
Por que o zen se tornou tão paradoxal e com tantas declarações absurdas, sob o foco da lógica comum? Exatamente por isso que estou explicando. Pela dificuldade em dar atributos a algo que só pode ser experimentado diretamente e que não pode ser transmitido através das palavras. Isso exige parênteses: nós dizemos que o Zen está além dos textos e dos ensinamentos, que é uma experiência direta, justamente por causa disso que estou dizendo. Por isso você tem que se calar e sentar-se para meditar a fim de ter uma experiência real. No entanto, nós damos ensinamentos no Zen e provavelmente, de todas as Escolas Budistas, é a que mais tem livros publicados.

 Porque é assim? Da mesma forma, porque a única maneira de fazer com que alguém tente se aprofundar nessa experiência é explicando algo, mas essa explicação não é a experiência, é apenas um dedo que aponta para a experiência, mas não é a experiência em si. A experiência em si é intransmissível. Portanto, os ensinamentos e textos nesse sentido não servem para a transmissão. A transmissão só existe de mestre para discípulo, de coração para coração, de mente para mente, sem a intermediação de palavras. No entanto, a transmissão é feita todo o tempo, também com ensinamentos. Mas se você se agarrar aos ensinamentos ou pensar que os ensinamentos, os textos, os livros, serão de real ajuda, eles podem até atrapalhar. Porque mergulhados nos textos e tentando entender com seu intelecto, com as ferramentas da linguagem uma coisa que é intransmissível pela linguagem ,você jamais poderá chegar ao reconhecimento direto que é exigido para o despertar. 

Voltando à questão do eu. Nosso eu, então, pode ser expandido, e isso é uma coisa que nós tentamos com educação, com a conscientização e com o próprio Zen. Existem pessoas que têm um eu que é limitado à superfície de sua pele. Essas pessoas não se importam com nada que acontece com as outras ou com o mundo ao seu redor, por isso promovem destruição, porque o mundo de sua percepção termina na sua pele. Então essa pessoa joga lixo no chão, porque ela comeu e sobrou um papel, e a calçada não é ela, a cidade não é ela, os outros não são ela e não se importa com a perturbação de jogar lixo no chão. Não serve mais para mim, então, está fora da minha pele, jogo o papel no chão. Esse é um eu limitado a sua pele. Outras pessoas têm um eu limitado à superfície externa de seu automóvel, por isso jogam lixo pela janela do carro. Outras têm um eu limitado a sua casa e jogam lixo pela janela do edifício. Isso tudo é muito primitivo. 

Os animais têm um senso de propriedade territorial, por isso, quando colocamos um cão numa casa ele defende aquele território, e isso também é muito primitivo dentro de nossa condição humana. Por isso também defendemos e cuidamos de um território que é nosso. Mas o território vai até o muro da casa, então jogamos o lixo por sobre o muro. Se a pessoa tem um pouco mais de consciência e está numa cidade, como por exemplo, em Porto Alegre, então ela cuida de Porto Alegre. Mas se está diante de um rio, porque o rio vai embora, então acha que pode jogar lixo nele Outras pessoas crêem que a noção de nação faz parte da identidade, e essa nação termina na linha imaginária de sua fronteira. Assim, o que está do outro lado é um inimigo e pode ser morto porque não faz parte de sua raça, de seu país. 

Nesse passo, vejam quanto temos que andar apenas para compreender mais amplamente a nossa percepção de mundo de modo a que nossa percepção pudesse abranger mais: “eu não sou só eu, eu sou a humanidade, eu sou o planeta, eu sou muito mais”. Se eu tiver essa noção de eu expandido, dei um passo importante, que é a ampliação da consciência e a percepção de um absoluto. Mas alguns praticantes do Zen chegam a esse ponto através da meditação e sentem-se unos com a humanidade, unos com o universo e unos com o todo. O que vocês diriam que é isso? O que diriam que é essa percepção? Seria a iluminação? Ainda não. Essa consciência já foi e ainda é muito confundida por praticantes, porque ela é magnífica como a iluminação: “Cheguei à percepção de que sou um com o todo”. Mas porque não é a iluminação?

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Não estamos separados


(continuação)
Essa forma - como nós somos, nossas formações mentais e nossa consciência - nos dá uma noção de separação. Nós olhamos para os outros seres e os vemos diferentes em forma, percebemos que existem limites entre nós e eles. Isso é claramente perceptível. Essa é nossa experiência. No entanto, todo o tempo o budismo está declarando que esta experiência é fruto de uma delusão, portanto, uma ignorância. 
Nós vemos, mas é delusão, não é exatamente assim. Nós olhamos, vemos as coisas, sua realidade dentro de um mundo relativo, o mundo das relações. O mundo das relações é interdependente e nenhuma dessas manifestações existe por si mesma; só existe em razão de todas as outras coisas que a ela estão conectadas. 
Quando percebemos esse fato e transferimos a nossa visão desse mundo relativo para o mundo absoluto, nós podemos entender que todos os seres e nós mesmos somos manifestações no mesmo vazio, da mesma potência dentro do universo, da mesma potencialidade que chamamos de vazio e que não pode ser descrita sem ser diminuída, não sendo possível dar-lhe, portanto, nenhum atributo. Não podemos descrevê-la sem fazer com que ela pareça menos do que é. 

É exatamente o que os místicos cristãos dos primeiros séculos chamaram de teologia apofática, aquela teologia que não declara nada a respeito da divindade, porque a divindade está acima da descrição. Mas nós, budistas, não chamamos a vacuidade de divindade, porque também se a chamássemos de divindade lhe atribuiríamos uma personalidade, uma intenção, um plano, ou uma intenção criadora que em absoluto a vacuidade não tem porque ela nada mais é que os próprios fenômenos. A vacuidade apenas aí está, mas está além da declaração de existir e não existir. Se eu a declarar existente também a estou diminuindo. Vejam que esse tipo de declaração torna claro que nossa linguagem está no seu limite, fica muito difícil explicitar as coisas falando dessa forma paradoxal.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Penso, logo, penso que existo



Esse primeiro momento é de semear, depois de colher e amassar e fazer o pão. Como surge a identidade? Nossa noção de eu surge dos agregados, mas quem são esses agregados?

Segundo os sutras, os agregados são aquelas coisas que, juntas, nos dão a noção de um eu próprio. Em primeiro lugar, a forma. Temos uma forma e olhamos para ela, nossa manifestação fenomênica, cármica, nesse mundo. Essa forma - nosso corpo - nos dá a primeira sensação de que somos indivíduos separados. Depois temos nossos sentidos, temos o contato que esses sentidos fazem, as percepções geradas pelos sentidos em contato com as coisas. A soma dessas percepções dentro do nosso programa mental dá origem a nossas formações mentais.
Essas formações mentais em operação produzem consciência. A junção de todas essas coisas produz a noção de um eu. “Ah, eu sou porque eu penso, porque eu opero no mundo, porque eu percebo, por isso então, eu sou”. Como na declaração do Discurso do Método, de Descartes, “Cogito, ergo, Sum” ou “Penso, logo, existo”. Para o Zen, isso não está correto. Para o Zen, a declaração mais apropriada deveria ser “Penso, logo penso que existo”. Quando surge essa percepção, dizemos que vem do fato de haver um carma, que gerou forma, gerou fenômeno e todas essas coisas. Vejam que o carma também condiciona a interpretação, ou seja, nossas formações mentais. Nosso corpo percebe sentidos, percebe as coisas de forma parecida, não igual. Não há nenhuma garantia de que o Giovane, aqui ao meu lado, veja a cor gelo da parede do ViaZen exatamente da mesma maneira que eu. Mas é muito próxima, tanto que eu e ele podemos falar sobre ela, analisá-la de muitas formas; é até por isso que seres humanos podem trocar experiências, conversar.
 Por isso existe literatura, poesia e assim nós, vendo o que outros escreveram ao longo da história, podemos ver como os sentimentos deles são semelhantes aos nossos, pois vemos de forma bastante próxima. Portanto, partilhamos um carma que interpreta as coisas de forma parecida. Temos programações parecidas, mas não idênticas. Por isso os sentimentos que surgem de pessoa para pessoa face às mesmas experiências são diferentes, porque o programa de suas formações mentais é algo diverso, influenciado por suas marcas cármicas.

(Palestra sobre Identidades, primeira parte, continua)

terça-feira, 2 de outubro de 2012

O barqueiro



Pergunta: Outro dia me perguntaram como eu vim parar no budismo, como tinha acontecido. Daí eu respondi que na época eu passava por umas inquietações, estava buscando algumas respostas, mas, refletindo bastante, não consegui encontrar uma resposta. Honestamente, eu não sei.

Monge Gensho: Existe uma questão de reconhecimento. Eu nasci em uma família em que o pai já era vegetariano, um místico, tinha muitos princípios em sua mente, mas não conhecia o budismo. Quando eu era pequeno eu me sentia atraído por religião. Então, uma amiga da minha mãe deu a ela um livro: “Meu Filho será Padre”. E ela era muito católica e me viu rezando na hora da Ave Maria. Minha mãe deve ter pensado: “Meu filho será padre”. E quando estava com vinte e três anos, passei algum tempo frequentando um mosteiro Beneditino na Bahia e o abade me convidou para ser monge, experimentar a vida monástica. Quando cheguei ao vinte e seis, eu vi um monge zen. Naquele instante comecei um grupo de zazen. E desde então, foi um sobe e desce na prática, pára, não tem professor, não tem sangha, não havia livros. Só fui costurar meu rakusu em 1992 e daí é que a prática se tornou mais constante. O que fez grande diferença foi ter montado um grupo, sentar, ler, praticar. Se formos olhar para o passado, acredito que tinha uma marca kármica para nascer naquela família. O principal, agora, é cultivar profundamente suas marcas kármicas para estar em melhores condições na próxima vez. Se possível, acumular kensho e, se possível, obter o satori nessa vida e ficar livre pra poder ir para a cidade com mãos auxiliadoras.

Observação: O que é um bodhisatva?

Monge Gesnho: Sim, a definição de bodhisatva é “aquele que obtendo a iluminação, renuncia a sua condição de Budha para continuar voltando e ajudando as pessoas a alcançar a iluminação”. É a imagem do barqueiro. Ele fica levando pessoas de uma margem para outra, de uma margem para a outra da sabedoria. Ele pode ir embora se quiser, abandonar o barco. Mas prefere sempre voltar à margem das pessoas que sofrem. E irá retornar sempre, até a ultima. Por isso o voto do bodhisatva. “Seres são inumeráveis, faço o voto de libertá-los, todos”.

Fim

( Texto de palestra sobre "Os dez passos do Boi" decupado da gravação por Ápio San e revisado por Eleonora San)

No Dharma

Genshô

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Na cidade com mãos auxiliadoras

                                 Ele capturou, domou e enfim se livrou do boi e de si mesmo

No décimo passo, “Na cidade com mãos auxiliadoras”, a figura nos mostra um homem em uma feira, se misturando ao mundo. A imagem mostra um homem gordo, barrigudo, despreocupado, a quem nada importa sua aparência pessoal. Está descalço, peito à mostra, sem se importar de que forma está vestido. Tudo isso simboliza sua nudez mental. Leva uma cesta que contém algo para as pessoas da cidade. Seu único pensamento é levar alegria aos demais. Mas o que ele leva no cesto? Talvez o vinho da vida. Finalmente, segundo Sekida, o mundo do antagonismo se dissolveu, o modo habitual de consciência caiu por completo. Já não leva você o antigo traje de cerimônias, vai descalço com o peito desnudo, tudo é bem-vindo. Pensamentos errantes? Tudo bem, essa é a grande meditação de Budha e a forma de consciência mais ativa. Goza da perfeita liberdade do samadhi lúdico, positivo. Junto aos homens vulgares ele fala vulgaridades, mas a seus passos árvores secas florescem. Libertou-se.

 Para nós todos aqui, o mais importante são os passos iniciais. A prática do samadhi (concentração meditativa), a experiência de kensho (experiência mística), o futuro satori (despertar), para quem chegar lá. Samadhi é com esforço, kensho acontece, não adianta querer que ele aconteça, ele irá acontecer sozinho. Satori e o caminho de Buddha ocorrerão porque entramos em uma torrente cármica e ela nos arrasta.

Pergunta: O que acontece se depois de longa preparação o praticante, não tendo chegado ao satori, mas tendo adquirido kensho, morre? Essa experiência, essa bagagem, seguem para a nova existência?

Monge Gensho: Seguem. Na próxima manifestação kármica, o que vai acontecer é que essa pessoa pode, já na infância, ter experiência de kensho. Pode perdê-lo, andar para trás, mas a atração dele pelo Dharma é muito forte. Isso é como reconhecer o seu lugar. Você chega no lugar de treinar e diz: “Esse é meu lugar, minha casa, não quero mais sair daqui”. Essa marca kármica é muito importante no treinamento. Muitas pessoas vão na Sangha no horário do meio-dia, elas podem ter uma experiência minúscula, mas essa experiência já se torna uma marca kármica. Pode ser que ela venha a praticar. Se ela já possui uma marca anterior, ela volta para praticar. Provavelmente, todos que estão aqui hoje já praticaram em vidas anteriores, senão não conseguiriam ficar. Por que fica uma pessoa de cada cem que vão à Sangha? Quem vem a sesshins, faz rakusu. Fazer rakusu é uma coisa fantástica. Porque ele fez e colocou no peito, isso é uma marca. Teve todo o trabalho para fazer, reverencia o rakusu. O rakusu cria uma grande marca na gente, o manto também. E é uma marca kármica.
 Há uma história famosa de uma prostituta. Os ladrões roubaram o manto de um monge. Levaram para um cabaré e pediram para que uma prostituta dançasse enquanto tirava o manto. Ela se enrolou no manto e começou a dançar e tirar o manto. Por causa disso, em sua outra vida ela nasceu em uma família budista. Se sentiu atraída pelo Dharma e tornou-se uma monja. No momento da dança, parecia uma heresia, um sacrilégio, mas esse momento criou uma marca kármica.