quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O Vazio


Um dos conceitos mais difíceis de entender no Budismo é o conceito de vazio, vacuidade.

É freqüente que pessoas cometam um erro básico quando, ouvindo falar do vazio, pensem por exemplo, que o fato da ciência ter mostrado que a maior parte do que vimos como matéria é vazio, e que se tomarmos um átomo e o imaginarmos como do tamanho da cúpula de uma catedral, o seu núcleo terá o tamanho de um grão de sal e os elétrons estarão na periferia da cúpula, e em seu entorno não haverá coisa alguma. Por esse motivo, os neutrinos podem atravessar a terra sem bater em nada. Só alguns deles se chocarão com o núcleo.

Somente porque interagimos com a matéria, temos a sensação de que seja sólida. A minha matéria é uma nuvem de energia muito rarefeita que interage com a nuvem extremamente rarefeita do braço da cadeira e, dessa forma, uma não penetra na outra.

Algumas pessoas pensam, então, que esse vazio físico é uma comprovação de que as declarações de Buda a respeito da vacuidade das coisas estão certas. Uma coisa não tem absolutamente nada a ver com a outra. Vacuidade no Budismo é o vazio de um “eu”. As coisas são vazias de um “eu”, um “eu” inerente, alguma coisa própria e exclusiva de um fenômeno.

O que Buda tentou dizer com “vazio” é que todas as coisas são vazias de um “eu”, porque todas as coisas são interconectadas e interdependentes. Parecem algo porque nós atribuímos a esse algo um conceito. Quando vemos um copo cheio de água, o que é o copo em si? É um cilindro fechado na base, constituído predominantemente, no caso desse copo de vidro, de silício, que é um átomo muito comum na crosta da terra. Mas o copo, essa entidade copo, ela existe realmente como entidade separada ou é uma projeção de nossa mente? Na realidade se nós partirmos o copo em pedaços e tivermos os cacos na minha mão, tudo que constitui o copo ainda está aqui, não é? Está inteiro aqui, mas nós podemos dizer que é um copo? Não, pois não serve mais para colocar água. Mas se tudo que o constitui ainda está aqui, onde está o copo? Afinal de contas o que é isso que chamamos de copo? Isso que chamamos de “entidade copo” é uma organização dos cacos de silício numa forma adequada para guardar água, então a entidade copo está na nossa mente. Talvez o copo seja simples demais.

Esta casa, o que é? Pedaços de madeira, carbono, reboco, vidro nas janelas, não temos dúvida alguma que é uma casa. Chegamos e imediatamente nos admiramos com sua beleza. Mas a casa só é a casa, organizada de determinada forma, seus agregados juntados a partir de uma idéia que é “a casa”. A coluna tem que estar em pé apoiando a trave pois, se não estiver nessa posição, a casa cai e não será mais uma casa, será como no caso do copo, cacos de casa. Onde está o “eu casa”, o que nós chamamos casa, o “eu” que está nas nossas mentes e que nos permite chamar de casa? Não está em lugar algum; o copo e a casa não são nada mais que matérias organizadas de determinada forma a qual atribuímos uma identidade.

Agora olhem para si mesmos. Nós somos constituídos de agregados - carbono, ferro, cálcio, água que é oxigênio e hidrogênio, tudo organizado de determinada forma. Comparados conosco, a casa é simples, o copo simplório, cada um dos corpos de vocês é altamente complexo, tem até um programa em cada célula dizendo à ela como agir. Esse programa e esta organização fazem de nós um conjunto de agregados que funciona. Como esse conjunto de agregados funciona e consegue pensar, ele diz a si mesmo: “eu sou”. A casa não consegue dizer a si mesma “eu sou”, pois ela é simples, nós é que dizemos “a casa”. Mas nós somos suficientemente complexos para olharmos para nossa organização de agregados, para nossa soma funcional e como estamos pensando dizermos “eu sou”.

A ciência já comprovou que alguns animais conseguem se reconhecer no espelho e até apagam sinais pintados em seu rosto, pois reconhecem a si mesmos. À medida que pegamos animais mais primitivos, eles não são capazes de se reconhecer. Um cão late para si mesmo no espelho, mas um chimpanzé faz caretas pois é capaz de se identificar, um golfinho também. Nós não temos dúvidas que a figura no espelho seja nós mesmos. Quando eu trabalhava organizando departamentos de telemarketing, colocamos espelhos em todas as mesas das operadoras de telemarketing, de modo que as telefonistas vissem a si mesmas. Imediatamente as operadoras começaram a trabalhar mais maquiadas, mais bem vestidas e passaram a sorrir para si mesmas quando falavam com as pessoas, ao sorrir seu tom de voz mudava, dessa forma tornavam-se mais simpáticas. É muito interessante que tenhamos essa noção de nós mesmos.

Mas voltando ao vazio, esses agregados - copo e casa - são vazios de um “eu”, isso é fácil de entender, eles não possuem nenhum “eu”, são só uma soma de agregados. Mas nós também somos uma soma de agregados vazios de um “eu” inerente, não temos um “eu” que seja exclusivo nosso, também somos um fenômeno construído e que pode ser desfeito em cacos. Imediatamente esse eu, com que nós nos identificamos, desaparece. Quando desfazemos em cacos a casa e temos só material de demolição, não existe mais casa. Mas quando desfazemos o homem, com a morte por exemplo, não existe mais um “eu” ali. Toda essa análise foi feita para dizer que o “eu” que tanto queremos que seja permanente e para ele criamos a idéia de uma alma eterna, que, por exemplo, pode reencarnar e carregar aquele “eu” consigo, não é mais que mera ilusão imaginada e nós também somos vazios de um “eu”.

O “eu” que existe dentro de nós é o que cada um acredita, tem a mesma consistência que o “eu” da casa ou do copo. É só um conjunto de agregados funcionando. Todo o universo é vazio de um “eu” inerente. Todos os fenômenos funcionam interconectados e interdependentes. Nós não existimos sem as plantas e sem o sol. Basta tirarmos qualquer um dos elementos e em muito pouco tempo nós estaremos completamente acabados. O problema da iluminação é, como é que eu acordo para o fato do meu “eu” ser uma ilusão e me reintegro, me reincorporo ao grande ser ao qual eu evidentemente pertenço, abdicando dessa ilusão de ser uma entidade separada, independente, com nome e que deseja permanecer para sempre. Como me livro disso? Como retorno e me livro de mim? Ao retornar ao grande ser, nascimento e morte desaparecem. Nascimento e morte são fenômenos deste “eu”. Esse “eu” nasceu, esse “eu” que morre. Ao nos livrarmos da ilusão do “eu”, somos instantaneamente eternos e livres desse ciclo repetido. Perceber isso é livrar-se de todo o sofrimento e angústia existencial.