sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Aproveite sua vida com alegria


Mas nós que viemos ao sesshin e nos sentamos para fazer zazen, viemos com um propósito - sentarmos em zazen para que nossa mente seja limpa. “Sesshin” quer dizer “consertar a mente ou reunir a mente que está dispersa”. Nós viemos para praticar de uma forma dura o suficiente para criar alguma experiência dentro de nós. Então essa prática está cheia de silêncio para que nós não sejamos arrastados por ventos, por isso é tão importante não falar, não conversar, porque tudo vai nos mobilizar. Nós podemos gostar de uma palavra que alguém diz e podemos não gostar de uma palavra, uma atitude, de qualquer coisa, e isso vai atrapalhar nosso sesshin. Então o sesshin deve ser profundamente solitário e silencioso. Fazemos toda a prática, sentamos e, cada vez que sentamos no zendo, tentamos nos livrar de todo passado e futuro, tentamos ficar ali, só tem uma coisa que realmente existe, esse vento movendo as árvores, o ruído do regato, ou pássaros que cantam, mas assim que isso acontece, deixa de acontecer e vamos avante, são sons com muito poucas marcas que nos mobilizam, diferente das palavras e das expressões dos outros que podem nos mobilizar.

A iluminação ou o despertar não significa nos desligarmos da vida, em absoluto. Significa mergulharmos mais profundamente na vida, na realidade da vida, não significa nos abandonarmos, ou tudo que fazemos. Ontem alguém me disse que se abandonássemos nosso “eu” não realizaríamos coisas. Eu apontei o fato de que os mestres e monges trabalham e tentam fazer coisas no mundo, modificando-o, portanto estão muito empenhados, estão inseridos no mundo.

A frase preferida de Saikawa Roshi é “enjoy your life” - aproveite sua vida. Usufrua de sua vida, goste de sua vida. “Joy” em inglês tem alegria dentro, usufrua de sua vida com alegria. O amor que você tem, os filhos, as pessoas a quem você ama. Quando sentar para comer coma com alegria e aproveite cada bocado completamente. Durma com prazer, sente no zazen com prazer. Aproveite cada pequeno som que você ouve. Essa vida é preciosa, insubstituível, é para ser aproveitada com intensidade. Na realidade o que o Zen diz é que quando nós estamos sonhando, pensando, viajando, não conseguimos aproveitar a vida como ela é. Sentamos para comer e não conseguimos sentir o gosto da comida porque estamos pensando em outra coisa. Deveríamos fazer as coisas completa e dedicadamente, muito envolvidos naquilo que estamos fazendo. A vida é preciosa e maravilhosa, devemos saber vivê-la completamente.


(retornaremos após o retiro de carnaval)

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Possuir o satori


As experiências de “kensho”, as experiências místicas de despertar, são às vezes experiências fugazes, nós as temos durante um tempo curto e elas desaparecem. E mesmo que possamos ter enxergado as coisas como elas realmente são e nos sintamos invadidos por uma enorme alegria, contentamento e felicidade, aquele evento torna-se uma lembrança, nós o perdemos, porque nossa prática ainda não é suficientemente forte. Chamamos essas experiências de “kensho” - experiências místicas. Mas quando passamos a ter experiências místicas por muitas vezes  mudamos a nós mesmos, de tal maneira que elas tornam-se acessíveis com facilidade, podendo ser chamadas a qualquer momento, aí temos o “satori”.

Então se você possui o “satori”, possui a “capacidade de estar iluminado”, ou de “iluminar todas as coisas com uma luz clara e lúcida”. As paixões não são mais o que nos arrasta, porque nossa visão lúcida tornou tudo bem fácil de ser interpretado. Nesse processo, o satori, há muitos graus diferentes. Você pode obter a iluminação e ela alterar apenas alguns aspectos da sua vida, mas não todos. Pode ser uma mera lucidez, mas você pode continuar sendo movido pelas emoções normais da vida e você terá que fazer algum esforço para recuperar aquela situação de iluminação. Mas o mais alto estágio seria aquele em que tudo mudou. Seu rosto mudou, suas atitudes mudaram e suas emoções mudaram.

À medida que o processo de iluminação vai se aprofundando, as emoções vão mudando, até chegarmos ao ponto em que não existem mais emoções nos arrastando, não há mais ventos nos levando de um lado para outro. É por isso que essa situação chama-se “nirvana”. Atingir o nirvana é não ter mais ventos nos arrastando. Nessa situação, situação de um Buda, não há qualquer energia com carma suficiente para forçar uma nova manifestação. Você precisaria escolher retornar, não precisa retornar, não tem energia para retornar para esse mundo, não tem paixões suficientes para fazer com que esse mundo o atraia. E assim, não há carma suficiente para gerar um nascimento e uma identidade. Então entre o primeiro despertar e uma iluminação completa vai uma distância bastante grande.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A prática e o despertar


Vamos comentar um pouco sobre o que é a prática e o que é a iluminação.

Existem duas grandes correntes no Zen. Uma delas é a que considera que a prática em si, é a iluminação. Essa corrente tornou-se bastante forte e muito popular entre monges e mestres. Ela tenta deixar de lado o que é o “kensho” ou o “satori” como eventos místicos e psicológicos de grande profundidade, e essa corrente dentro da Soto Zen se concentra na prática em si. Ela diz - “não pense nada, não procure nada, não ambicione, você deve se concentrar na forma”- ou seja, entre no zendo com determinado pé, faça o gasshô concentradamente, procure a forma perfeita, sente-se ereto, quieto na melhor forma possível, não se mova, faça seu oryoki com a máxima precisão, faça seu mudra certo, não o deixe torto, não faça nada que não seja perfeito, procure a perfeição no seu ato, conserve sua boca fechada em silêncio, pratique o silêncio da prática do sesshin, não deixe sua mente se dispersar, tente seguir cada coisa com a máxima precisão.

Essa corrente portanto, diz que a prática é a iluminação. Não é propriamente a corrente da nossa linhagem. A nossa linhagem, a linhagem de Saikawa Roshi, é uma linhagem que enfatiza, que dá ênfase a um outro lado, que é do acordar, da experiência mística. O que caracteriza os mestres dessa corrente são as perguntas como – “Quem sou eu”? – ou – “Qual era minha face antes dos meus pais terem nascido”? – nossa corrente enfatiza a procura da experiência mística.

A “forma” nessa corrente é importante, mas se há qualquer engano ou erro, ele não é tomado como erro capital, mas sim um erro que acontece, “não faço perfeito, ninguém faz perfeito”. Tentamos, mas não é nada trágico se alguém troca o pé e entra na sala com o outro pé. Ele se distraiu, mas a gente sabe que naquele momento a mente dele viajou e ele não fez certo, e não fazemos disso um grande acontecimento. Em vez de dizer – “faça certo, preste atenção” - os mestres desta linhagem dizem – “tente, se errar não tem importância, na próxima vez a gente faz melhor". Os ritos e as cerimônias são importantes, são relevantes, mas não são a essência da prática, o sentido é a experiência mística, é ela a iluminação.

Então você procura a experiência, mas como é que se procura a experiência? Procura-se a experiência através do zazen e de procurar acordar, enxergar a realidade da vida através de uma experiência pessoal. Difícil de descrever, mas é caracterizada por emoções, por percepções, insights profundos. As descrições são um tanto obscuras como dizer - “subitamente céus e terra desabaram com estrépito” ou “uma luz dourada envolveu todas as coisas” ou ainda “subitamente uma grande alegria me invadiu e todas as coisas que pareciam ter importância, deixaram de ter. As coisas da vida passaram a ser apenas eventos como de um sonho, e enxerguei o fundo da vida. E o relevante nesse “fundo da vida” é algo diferente do que pensara até então”, descrições como ”sinto-me conectado a todas as coisas e o receio da morte desapareceu completamente”.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Carma, base do pensamento moral


Pergunta – Mas não existe alguma piora, como no caso da TV, por exemplo?

Monge Genshô – Isto é uma aparência, nós podemos analisar por outro ângulo também. Há apenas 100 anos atrás não existia eletricidade. Para ouvir música, você teria que ver um instrumentista tocar. A medida que nós criamos a eletricidade e os instrumentos eletrônicos, hoje podemos tocar e gravar música usando computadores, etc… Logo, muitos começaram a fazer música. Agora, o gosto geral não é bom, de modo que houve uma vulgarização, por ser um meio de acesso geral. Vou dar um exemplo mais flagrante. Antigamente você abria um jornal e lia as notícias. Uma agência de notícias,  coloca a disposição de um jornal, por dia, centenas de notícias. Quantas notícias você vai publicar? Dez, doze, não muito mais que isso. De modo que o editor vai escolher as matérias que endossam a sua linha editorial. Ele não precisa mentir, apenas escolher. Publica-se aquilo que apóia o pensamento do editor. Agora temos a internet. Na internet, qualquer pessoa com um teclado pode escrever. Portanto, agora temos todo tipo de notícia, você abre a internet e vê o que está disponível. Sem editores, você não tem mais o filtro, ou seja, qualquer tolice ou mentira será publicada. Não era assim no passado? Era, mas não existia a disponibilidade de colocar isso na mão de todos. Hoje temos bilhões de novos textos todos os dias na internet. Conclusão: a humanidade sempre foi medíocre, o que acontece é que agora a mediocridade ganhou voz.

Hoje temos 200 a 300 canais de TV, mas com tudo isso temos a sensação de não ter nada para assistir. Temos que filtrar muito bem algo que não apele para os sentimentos médios, que são baixos. As pessoas dizem “a culpa é da mídia, que divulga apenas crimes”. Quando eu era diretor de um jornal do RS, nós fizemos uma pesquisa. Qual a página mais lida do jornal? Horóscopo. Quais as matérias mais demandadas? Polícia e Futebol. Qual a página menos lida? Editorial, com 4%. Porque você liga a televisão e não acha um concerto de alta qualidade para assistir? Os canais que disponibilizarem tal coisa não vão ter audiência. Por que os jornais e TV têm tantas matérias de criminalidade? Se você colocar algo deste tipo, várias pessoas vão ligar a TV para assistir e abrir o jornal para ler. Tendo sido um diretor na área, posso dizer que não é a mídia que dita o que as pessoas vão ler. Quem pauta o que as pessoas vão ler ou assistir algo é o público. Quando as pessoas assistem algo, dão ibope. Com ibope pode-se vender anúncios e isso dita o interesse da mídia.

Como os budistas devem agir? Os budistas devem mudar as próprias mentes. Se você mudar sua mente estará mudando o mundo. No dia que mudarmos nossas mentes teremos um povo diferente, com um comportamento diferente. Por acreditarmos no poder, no dinheiro como valores principais, nos tornarmos a sociedade que somos e nascemos aqui pois temos karma para isso. Há uma explicação para esta sociedade ser como é, a mania que temos de atribuir a outro (demônios, políticos, mídia, sistema econômico) é uma maneira fácil, como se o problema não fosse nosso. A culpa é sempre nossa. O que eu faço para que isso aconteça? Como geramos karma para nossos problemas acontecerem? Esta é a essência do nosso pensamento moral.

Asuras, trindade, deuses e mentes


Pergunta – Como o senhor poderia expressar esta condição de grande mérito humano?

Monge Genshô – Acho melhor usar o termo Asura. Em um contexto humano seria um executivo poderoso, no sentido do Asura estar sempre batalhando, sendo muito competitivo e poderoso, mas não poderoso como os deuses que são seres que não precisam se esforçar. Neste contexto poderíamos considerar aquele que nasce em uma condição de riqueza, sem nenhuma perspectiva de sofrimento material. Mas este estará sujeito ao karma e irá morrer. Os semi deuses invejam os deuses, mas estes invejam os homens, pois eles gostariam de ter uma vida simples, livre, sem tantas obrigações, etc…Esta forma de entender esta cosmogonia é muito útil didaticamente.

Pergunta – Com relação ao conceito da Trindade, qual seria sua origem e significado?

Monge Genshô – Os números parecem possuir determinadas características, porém esta idéia não é bem absoluta. O número três, sete e outros sempre foram considerados mágicos e esotéricos: o número três ligado ao triângulo, por exemplo. Veja, contudo, que no judaísmo, por exemplo, o Deus judaico (Jeová), como o Deus islâmico (Alá), é único, sem Trindade. A idéia da Trindade surge mais tarde no cristianismo, quando o Cristo Jesus é elevado à condição de Deus e cria-se sua representação com o Espírito Santo. Isto não existia no Judaísmo, mas trata-se de uma criação posterior do Cristianismo, possivelmente influenciada pelos mistérios de Mitra (Mitraísmo3) e pela cultura grega e esta por sua vez por trindades mais antigas.
Também vale observar a influência do budismo no pensamento grego e judaico. O imperador indiano Ashoka, que morreu em 232 a.C., enviou missionários budistas ao ocidente, que chegaram à Grécia, Oriente Médio e Egito. Então o pensamento budista espalhou-se com essa iniciativa de missionários do imperador. Logo, vamos ver traços do pensamento budista em alguns filósofos gregos, como Plotino; Epicuro; Diógenes, Laércio. O estoicismo foi influenciado pelo pensamento budista também, no sentido da postura de ataraxia do sábio4. Estas são coisas que o ensino eurocêntrico das nossas Universidades geralmente não contemplava, o que está começando a mudar.

Pergunta – Qual a raiz da questão das divindades?

Monge Genshô – Os homens sempre tenderam a atribuir aos Deuses aquilo que não conseguiam entender. Quando tínhamos um vulcão, colocava-se um Deus dentro do vulcão, como uma chaminé do Inferno ou porta para o reino de Hades. Nossos índios aqui tinham um Deus do Trovão, etc… O que acontece é que, a medida que o conhecimento humano aumenta, os deuses recuam. Quando você não entendia como funcionava o trovão, então tinha o deus do trovão. Agora quando compreende-se o que é o fenômeno do raio, então o deus desapareceu.

Pergunta – Esta personificação dos fenômenos desconhecidos não seria uma característica da natureza humana?

Monge Genshô – Os homens geralmente buscam soluções mágicas, pois são mais fáceis. Se você realmente quiser entender como funciona sua mente é algo difícil, comparado à ideia de um pensamento maligno colocada por um demônio dentro da sua cabeça. Quando então vem algo bom você atribui a um anjo ou a uma presença divina. Isto é tornar mágica a realidade, mas o budismo diz, não, é você que alimenta sua mente. Como fazemos? Nós treinamos a mente, sem nenhuma influência externa. A influência real é você. Claro que é influenciado pelas coisas que ouve, pelas pessoas que procura, pelos programas de TV que assiste, por aquilo que lê, etc… Vemos que o praticante budista, a medida que toma consciência de como as coisas funcionam, ele tende a ficar seletivo. “Ver isso não é bom para mim…” Na minha prática pessoal este tipo de coisa tornou-se cada vez mais flagrante. Estudar a história humana nós faz perceber como nossa mente funciona, e facilita o trabalho do professor. Quando alguém declara “o mundo está terrível” ou “hoje estamos vivendo uma época cada vez pior”, na realidade possui pouco conhecimento da história. No passado o comportamento da humanidade foi muito cruel. O mundo de hoje, que nos parece terrível, na realidade nunca foi tão bom, por incrível que pareça.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O budismo é ateu?


Frequentemente nós temos problemas com a questão do Budismo ser teísta ou ateísta. Com isso, as pessoas geralmente perguntam: “Qual a postura do Budismo com relação aos deuses?”  A única questão na qual o Budismo é mais enfático é a inexistência de um Deus Criador, que fez o mundo e todas as coisas. Este conceito é absolutamente estranho ao budismo. O budismo nasceu na Índia, onde a religião predominante possui mais de 300 milhões de deidades1. Esta religião indiana – hinduísmo – também apresenta a ideia de um Deus Criador e sua Trindade (Trimurti) composta por Brahma, o Criador, Vishnu, o Preservador e Shiva, o Destruidor2.
O budismo negou a existência de um Deus Criador, um deus que criasse, julgasse e decidisse tudo. Na realidade, este é o ideal de Deus que permeia toda nossa cultura judaico-cristã e ocidental, nós temos um Deus Criador, um Demiurgo. Contudo, Buda não se estendeu sobre esta questão, por não estar disposto a discutir assuntos não-verificáveis. Logo, algumas pessoas insistem em afirmar que o budismo é ateu. O budismo não pode ser classificado como ateu, uma vez que representaria uma postura ativa de negação de um deus. Ou seja, o ateu estaria disposto a confrontar e provar a inexistência deste deus e o budismo não se propõe a isso. A melhor descrição, talvez, da posição budista seria: O budismo é não-teista, ou seja, ele não fala sobre deuses, mas também não assume a postura ativa de negação, caracterizada pelo ateísmo.
Esta postura está estendida a todos os tipos de deuses. No entanto, surge uma outra confusão, porque quando falamos sobre os 6 Reinos do Budismo: Inferno, Fantamas Famintos (Preta), Animal, Humano, Semi-Deuses (Asura) e Deuses (Deva). Na realidade o termo deuses vem de devas, sem o significado normalmente entendido para deus. O reino dos deuses é uma condição a qual os homens com grande mérito podem ascender. Uma espécie de vida prazeirosa, sem dificuldades, onde tudo é fácil. Esta seria a condição de deva. Porém, eles também têm karma, também decairão, etc… Portanto, não se trata em absoluto do conceito que temos de deuses eternos, ou algo como a concepção hindu.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Você cria seu mundo


Aluno - E quem controla essa manifestação? Se não sou eu quem controla, de onde vem esse controle?

Monge Genshô – Quem controla a gravidade, a chuva e os ventos? Nós sempre desejamos um “quem” por trás de todas as coisas, mas nem em você existe um “quem”. Quem dentro de você pensa? Você saberia me dizer? Quem é essa dentro de você que pensa?

Aluno – A mente.

Monge Genshô – E quem é essa mente? Quem controla essa mente?

Aluno – Eu ou aquilo que a gente pensa que é.

Monge Genshô – Você pensa que controla sua mente. Mas se é sua mente que pensa, que mente que pensa e que mente que controla o pensamento? Você tem duas mentes? Uma controladora e outra pensadora?

Aluno – Não. Penso que seja uma manifestação maior que eu, que está por trás e que criou...

Monge Genshô – E quem controla essa manifestação?

Aluno – Deus?

Monge Genshô – E quem controla esse Deus? Se ele parar e pensar, “Eu penso, mas quem me controla”? Qual seria a resposta que ele encontraria?

Aluno – Não, ele é a expressão de tudo.

Monge Genshô – E por que você não é a expressão de tudo?

Aluno – Eu quero ser a expressão de tudo, mas tenho que me livrar desse “eu”.

Monge Genshô – Mas então por que você atribuiu esse “eu” a alguém fora de você e por que esse “eu” fora de você não tem o mesmo problema que você? Ele teria, não é mesmo?

Aluno – Não vejo dessa forma. Ele é, logo já sabe tudo...

Monge Genshô – Mas então por que você não é?

Aluno – Alguma coisa aconteceu que mudou tudo isso...

Monge Genshô – Você está querendo atribuir isso a uma definição. Existe alguém atrás de mim que sabe tudo, pensa tudo e que sabe o motivo de tudo.

Aluno – Não acredito que ele, por exemplo, fosse criar o sofrimento. Se eu soubesse que sou parte dessa célula, não iria criar sofrimento para eu própria sofrer...

Monge Genshô – Mas então por que esse ser atrás de você criou o sofrimento?

Aluno – Não sei se foi ele quem criou. Pode ter sido algo...

Monge Genshô – Ah, então existe outro além dele capaz de criar e que criou o sofrimento?

Aluno – Não sei, é o que eu gostaria de saber.

Monge Genshô – A resposta é não. Isso é uma regressão sem fim. Se eu criar alguém extremamente bom atrás de nós, precisarei criar alguém extremamente mau para poder explicar a existência do mal.

Aluno – E sobre o véu de Maya, o véu da ilusão?

Monge Genshô – O véu da ilusão é que cria todas essas armadilhas. Nós criamos soluções através de regressões, por exemplo, como não sei como isso surgiu, eu crio algo atrás de mim para explicar o surgimento disso. Veja bem, os gregos não sabiam o que era o sol, então criaram o deus do sol que era Apolo e guiava o carro do sol todos os dias. Dessa forma, eles atribuíram à Apolo a solução do sol. Mas alguém poderia perguntar: “Mas e Apolo, de onde surgiu”? Para resolver esse problema, Apolo é filho de Zeus. Mas Zeus é filho de quem? Então criaram um Deus que era pai de Zeus a quem Zeus matou. E assim por diante.

Quando você cria uma explicação, tem que criar uma regressão para explicar o surgimento da explicação. Para resolver esse problema o Budismo nunca fala sobre essas coisas. Nós estamos raciocinando para ver como é a historia do pensamento, mas o budismo não tem esse tipo de respostas ou perguntas, “quem foi que fez isso”? Ninguém controla sua mente, ela é sua. Você tem o poder de ser senhora de sua mente, completamente, não existe ninguém comandando sua mente do lado de fora. Você pode induzir sua mente a se sintonizar e trabalhar com outras coisas, por exemplo, você falar palavras boas e criar um mundo bom ou pode viver a reclamar e insultar e criar um mundo semelhante a isso, atraindo pessoas com energia semelhante. Você cria seu mundo. No budismo o mundo não é criado de fora para dentro, mas sim de dentro para fora. Não atribuímos nada a uma força externa.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Por sabermos nos perdemos


1) De certo modo, uma ave que é simplesmente uma ave, está mais próxima de sua natureza búdica do que os seres humanos?

Monge Genshô – Por não saber de si mesma está.  Por sabermos de nós mesmos, nos perdemos. Imaginem que fôssemos pássaros. Se eu fosse um pássaro, chegasse à beira do ninho e pensasse, “nunca voei, mas posso voar”, teria um grande medo. Pelo fato de pensar no vôo e na queda, teríamos medo. Uma águia na beira do ninho não pensa, e por isso alça vôo.

Estava ouvindo um concerto de “Rachmaninof”, o concerto numero três, que é um dos concertos mais difíceis de ser executado, é uma espécie de terror dos pianistas. Extremamente complexo com uma tempestade de notas. Quando prestamos atenção no terceiro movimento e vemos as mãos voando no teclado, logo entendemos que não pode haver um pensamento por trás. Se em algum momento o pianista pensar na próxima nota, é impossível tocar.

Há uma piada Zen em que alguém pergunta para uma centopeia: “Qual é a perna que você mexe primeiro”? Desde então ela não conseguiu mais andar. Isso está presente em nossas vidas o tempo todo. Mesmo que não prestemos atenção, pode aparecer alguém com uma crise de ansiedade e dizer que tem medo de esquecer-se de respirar, coisa que uma pessoa sadia não pensaria. A mesma coisa acontece com uma pessoa que, ao deitar-se, deseja ficar bem atento ao exato momento em que irá adormecer. Há este momento em que acontece uma mudança no cérebro e a pessoa adormece, se você prestar muita atenção não irá dormir, porque para dormir precisa esquecer. Em geral estamos perdidos e não conseguimos viver completamente, em razão desta questão. Então a resposta é sim, o pássaro está mais perto porque não sabe.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

O Dharma é raramente encontrado


É muito raro ter uma Sangha cheia como hoje, é confortador ver tantas pessoas interessadas no Dharma. Porque o Dharma é raramente encontrado? Primeiro porque mesmo que existam muitas oportunidades de vida no universo, na Terra nós estimamos - mesmo que a ciência tenha dificuldades em estimar - que trinta bilhões de formas diferentes de vida já surgiram. Dessas formas de vida, 99,9% já se extinguiram e, desta forma, restam menos vidas do que já existiram em nosso planeta.

Esse não é um evento de agora, já tivemos várias extinções de vida na Terra. O primeiro grande momento de explosão de vida na Terra foi o período Cambriano, onde surgiram os “trilobites” e do qual hoje só restam fósseis. Das grandes florestas do período carbonífero também não restou nada. Já tivemos na Terra uma atmosfera redutora que não era baseada em oxigênio. Quando a Terra produziu muito oxigênio e a atmosfera começou a ter cada vez mais O2, este era um gás muito venenoso e extinguiu praticamente toda a vida no planeta. Tivemos a extinção do Período Cambriano, depois a extinção dos dinossauros e dos animais de grande porte. Os únicos animais que sobraram foram os muito pequenos que viviam em tocas e não foram afetados pelos possíveis meteoros que atingiram o planeta mudando seu clima. Dentre esses pequenos animais encontravam-se alguns mamíferos e desses descendem os mamíferos que hoje habitam o planeta.

Uma única espécie de hominídeo desenvolveu-se, começou a andar ereto e, com um cérebro melhor dotado, foi povoando o planeta. Então, desses trinta bilhões de espécies que já habitaram o planeta, uma única conseguiu desenvolver uma civilização. Ainda assim, é uma história muito recente de apenas dez mil anos, se contarmos a história da agricultura, frente aos quatro bilhões de vida na Terra.

Os faraós morriam em média com trinta anos de idade.  Nesse momento que estamos, vivemos o dobro do que vivíamos no século XX. E isso aconteceu dos anos quarenta pra cá, antes disso havia mais homens que mulheres porque as mulheres morriam no parto. Mas isso é para ilustrar que cada pessoa dessa sala é descendente direto de uma linhagem de vida que começa por volta de dois bilhões e meio de anos atrás. Somos descendentes daquele início de vida. Parece que a matéria inorgânica no universo tende a formar vida. O mais extraordinário é que cada um de nós pode traçar uma genealogia até um ser unicelular, até dois bilhões e meio de anos atrás. Pode ser que alguns de vocês não tenham descendentes e a linhagem morra com vocês.

Somos descendentes dos que ganharam guerras, cometeram crimes, estupraram e dos que fizeram com que seus genes fossem adiante. Não somos uma linhagem de pessoas boazinhas e sim daqueles que ganharam a batalha da sobrevivência. Não é de se admirar, portanto, que olhemos para dentro de nós e vejamos sentimentos agressivos e muitas coisas que vêm dessa linhagem herdada.

Tudo que foi dito é para chamar atenção para o fato de que, mesmo que exista vida em bilhões de mundos, é muito provável que existam mundos com vida estoante, mas sem que uma única espécie tenha desenvolvido a capacidade de criar civilização e que isto seja um acontecimento muito breve na história de um mundo ou universo e, mesmo assim, somos prodigiosos no sentido de nossa sobrevivência.

Devemos nos perguntar então, como surgiu a espiritualidade, como surgiram as perguntas “porquê estou aqui? Como surgiu minha consciência? Como é que desenvolvemos uma consciência tal que compreendeu sua finitude e se viu em um beco sem saída”? Os pássaros, os peixes, os micróbios, nossos corpos cheios de vida, não são nossas próprias células; mais da metade do nosso peso são de bactérias que coexistem simbióticamente e nos ajudam a sobreviver. Como aconteceu algo tão complicado, como cada célula tem um código de vida tão longo que estendido chegaria a dois metros? O que é isso que aconteceu conosco? O que é essa mente que pensa dentro de nós? Quem é esse que diz “eu sou”? Por que tememos uma morte que sabemos ser certa?

Os pássaros e os peixes não pensam nessa morte que para eles também é certa. Apenas vivem. Então, os peixes são verdadeiramente peixes, os pássaros são verdadeiramente pássaros, só os homens não são verdadeiramente homens. Existe algo dentro de nós que pensa fora disso, “não somos verdadeiramente seres humanos”. Algo dentro de nós deseja mais, por isso nos angustiamos com nossa finitude e queremos descobrir um sentido para nossa vida.

Buda teve o mesmo problema e ele sentou e meditou, para resolver esse problema. Mas ele resolveu de forma diferente de todos os outros que apresentaram à humanidade crenças e esperanças de sobrevivência eterna de seu “eu”. Ele descobriu que o “eu” construído por ele é que é a ilusão e libertar-se dessa ilusão, é voltar-se para a verdadeira natureza. O universo inteiro sou eu mesmo. Ele entendeu que essa expressão de vida que falamos aqui é mera manifestação, não é uma criação. Somos fagulhas do universo. Não temos como sair do universo, estamos sujeitos a nascimento e morte, aliás, essa ilusão de um “eu” pessoal é que está presa a nascimento e morte. Tão logo passo a pensar, eu penso: “eu sou”, e esse “eu sou” sabe que é função desse corpo e desse cérebro e por isso surge e desaparece, essa é a tragédia do homem, essa consciência do “eu sou”.

A iluminação da qual Buda falou, é libertar-se completamente do “eu sou” e voltar a perceber-se como o todo abrangente, o grande ser que está além desta manifestação pessoal. Esse grande ser que nós e todos os outros seres somos, não está sujeito a nascimento e morte. Embora seja cíclico, surja e desapareça, ele é a própria vacuidade e  todas as coisas, não é um algo do qual surgem todas as coisas, mas é a própria natureza de todas as coisas  todos os seres serem vazios de um “eu” inerente.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Quem é este que quer permanecer?


Aluno – Se a pessoa faleceu, a mente acaba também? Gostaria de saber se há uma continuidade...

Monge Genshô – Por que você realmente quer saber isso?

Aluno – Por mais grandiosa que é a vida, às vezes parece pouco. Parece que nós queremos, de certa forma, permanecer na vida.

Monge Genshô – Quem quer permanecer nessa vida?

Aluno – Eu gostaria de permanecer...

Monge Genshô – Cada EU individual quer se manter, permanecer. É por isso que fazemos estas perguntas, como: “A consciência sobrevive à morte”? Mas o EU não tem como sobreviver à morte. Você tem como relembrar da sua vida passada? Portanto o EU daquela vida passada não sobreviveu, uma vez que este EU é basicamente constituído de suas memórias. Então meu EU, nenhum EU, sobrevive à morte. Mas sabemos que a vida continua, que o universo continua. Inevitavelmente, pela lógica, nós continuamos. Nosso carma, essa onda cármica, continua se manifestando. Sua personalidade, certas características, vieram de algum lugar. Portanto você é continuidade, mas não de um eu. Que existe continuidade é certo, que não há continuidade de um EU, também é certo. Até porque não há necessidade de você morrer para que seu EU desapareça. Minha mãe morreu de Alzheimer com 97 anos. Ela não sabia mais quem ela era. Nem quem eu era. Nem como o mundo funcionava. Isso é natural. O nome que ela deu-me é Petrucio. Eu estava sentado com ela, pouco antes dela morrer, quando ela me disse: “Mas quem é você?”. Eu disse: “Eu sou Petrucio”. Ela disse: “Não, Petrucio é uma criança”.

Aluno – A filosofia budista não toca no assunto da reencarnação?

Genshô – Isto não é um assunto budista, como uma alma ou partícula essencial. Essa é a pergunta mais frequente que eu respondo aqui. Essa idéia vem da doutrina hinduísta, baseada na idéia do atman, uma alma indivisível que transita de um corpo para outro. E o espiritismo moderno, que apareceu na França, também assimilou esse tipo de doutrina, que está bastante espalhada pelo mundo. Mas Buda ensinou que não existem nem almas nem espíritos permanentes. Nada é permanente, nem nenhum EU é permanente. Portanto, a palavra reencarnação não se aplica, pois não há nada para ganhar uma carne nova. Esta é uma tentativa do ser humano de permanecer. Como queremos permanecer, há necessidade de ganhar um corpo novo. Eu também quero um corpo novo, este aqui já está um pouco prejudicado. Então nós podemos perceber que nós queremos tremendamente que o EU permaneça, pois nós amamos demais a nós mesmos. E é exatamente por isso que as religiões foram criadas, para dar a esperança que meu EU continue. Então inventamos céus, infernos, reencarnações… Por isso o budismo tem a tendência de não ser muito popular, pois quando as ilusões chegam, a tarefa do professor do Zen é puxar o tapete debaixo do aluno e tirar-lhe todas as muletas, todas as crenças e apoios, e dizer-lhe: “Agora sim, agora você está livre”, e por isso fazemos o voto: “delusões são inexauríveis, faço o voto de extinguí-las todas”. E a mais forte, mais terrível, mais venenosa ilusão é o EU. Parece uma falta de esperanças, mas, na realidade, esta é a grande esperança, maravilhosa, pois significa engolir todo universo e a eternidade.

Aluno – Como realizar tudo isso em apenas uma vida?

Genshô – Não tenha pressa,  há bastante tempo nas próximas...

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Corpo e mente estão ligados


Aluno – Monge, tenho um questionamento que venho pensando há algum tempo sobre a diferença entre o corpo e a mente. Eles andam juntos, mas o corpo e a mente são a mesma coisa ou estão separados? Isso é muito confuso para mim…    

Monge Genshô – Nós separamos as coisas com palavras na tentativa de entendê-las. Nosso corpo e nossa mente estão intrinsecamente ligados. Se você ficar com febre, irá se sentir mal, bastante impaciente e vai querer sair daqui, ir para casa deitar e dormir. Sua mente será diretamente atingida pela doença do seu corpo. Por outro lado, se você tiver uma mente com raiva e sentir ódio de alguém, seu coração vai bater mais rápido, você vai ter adrenalina circulando, etc. Se você sentar em zazen e começar a pensar em uma situação de briga, sentirá as consequências. Seu corpo estará parado, mas sua mente agitada. Seu corpo, portanto, está ligado à sua mente, eles não podem ser considerados separados.

Por isso nós usamos o corpo para controlar a mente. Nós aquietamos o corpo e isso ajuda a aquietar a mente. Não adianta você dizer: “ah, eu quero ter uma boa mente”, mas vive agitando o corpo todo o tempo sem parar, ou com fones de ouvido com música bem alta, balançando as pernas e pensando: “o que vamos fazer agora?”. Eu fui pegar um parente no aeroporto e ele disse: “E aí, qual é o programa?”. Eu disse: “não tem programa…nós vamos chegar em casa em uma reunião de família, quando sentirmos fome colocamos a mesa, comemos, conversamos, se tiver um tempo bom podemos sair para caminhar, ir à praia… não tem programa”. Para ele aquilo é muito difícil. Ele estava com as costas muito tensas, pois trabalhava em uma empresa muito competitiva. Tentei levá-lo para o zendo em casa. “Suas costas estão terríveis, vou bater um pouco com o kyosaku (bastão zen)”. Ele deve estar contando a história até hoje. Na realidade, ele tinha que tratar o corpo, que estava tão atingido por essa tensão constante porque a mente dele está constantemente turbulenta.

A maioria das pessoas está vivendo um sonho assim, um sonho agitado e de grande ilusão. Então não conseguem aproveitar e viver a vida. Meu mestre, Saikawa Roshi, diz assim: “Enjoy your life”, aproveite a vida. Mas o que é aproveitar a vida? Ah, vamos sentar no jardim e conversar um pouco. Vamos regar as plantas… Mas nunca, até hoje, eu recebi um Monge na minha casa que tenha dito assim: “E ai, vamos ver televisão?” Isso é bastante interessante. Isso diz muito sobre o que o treinamento budista acaba fazendo. Não estou dizendo que não podemos ver televisão, mas o que você está vendo? Por que está vendo? O que pretende com isso? Quer enriquecer sua vida? Hoje temos canais apenas com concertos e coisas assim, mas suponho que eles tenham tido grandes dificuldades para vender isso. Não é o que parece lógico para as pessoas, assistir um concerto ou uma missa. É coisa de louco!

Durante toda a história do Budismo, muitos mestres foram considerados pessoas loucas no seu tempo. Ryokan é um dos mestres mais interessantes. Ele viveu há uns 200 anos atrás. Grande poeta e calígrafo. Filho de um político, ele retirou-se e foi viver em uma cabana que tinha quatro tatames. Significa que a cabana tinha mais ou menos 4x2m. Esta era o espaço onde ele vivia. Este poeta e calígrafo muito famoso, Ryokan, estava um dia em sua cabana catando piolhos e colocando em uma folha de papel. E estava muito frio, por isso Ryokan pensou “Ah, eles vão passar frio!” e os recolocou na cabeça. Perfeitamente louco não é?  Muito maravilhosa a atitude de Ryokan.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Ria de seus erros


Aluno –  O senhor poderia falar um pouco mais sobre o caminho do meio?

Monge Genshô –  O caminho do meio, é o caminho budista. Isto é caracterizado por uma célebre história de Buda, uma metáfora. Você tem uma cítara, um instrumento musical. Se você aperta demais a corda, ela não toca, pode arrebentar. Se você aperta de menos, você não consegue som. Então deve afiná-la no tom justo e para afinar um instrumento no tom justo, existe um meio. Os instrumentos musicais são afinados com a nota “lá”. Quando uma orquestra vai tocar, o primeiro violino, o spalla, toca o “lá” para toda orquestra. Ela é afinada ali, naquele momento. Por que os instrumentos não vêm afinados lá de trás? Porque ali temos outra temperatura e os instrumentos com pequenas variações de temperatura mudam sua afinação. Então o spalla dá o “lá”, e todos afinam. E esta é uma nota média. A partir do caminho do meio nós podemos produzir música. Quando nós exageramos para qualquer lado, nós não conseguimos.

Mas isto é muito típico na prática espiritual. Se você tentar ser um santo perfeito, não cometer nenhum erro, não ter nenhum pensamento errado, não dizer nenhuma palavra errada e punir-se cada vez que você comete um erro, você não fará mais que viver em culpas, tentando ser um santo. No Zen nós dizemos que não queremos santos. Nós queremos pessoas despertas e pessoas despertas riem dos seus erros. Eles não querem ser santos, sabem que cometem erros, sempre. Do outro lado, algumas pessoas imaginam: o budismo não tem pecado, não tem mandamentos, nem um Deus para nos castigar, não existe um inferno nos esperando nem um céu para nos premiar, então tudo é permitido e poderei fazer o que EU quero.

Este é um grande erro, porque Buda disse: para evitar o sofrimento você precisa seguir tais caminhos, e ensinou o Caminho Óctuplo. E este caminho é composto de muitas regras morais e virtuosas. Regras para falar, para pensar, para agir, trabalhos para viver, o que é bom e o que não é. Buda não escapa do certo e errado no Caminho Óctuplo. Você não pode ficar com algo que não lhe é dado espontaneamente, ou seja, você não pode roubar. Se você roubar, isto será um caminho para grande sofrimento. Existe certo e errado, bem como regras. Então o Caminho do Meio é um caminho de moderação, nem o exagero do ascetismo, da tentativa de ser um santo, nem o caminho da licenciosidade, onde tudo é permitido e corremos atrás de prazeres. Isto é o Caminho do Meio.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O teto do inferno é transitório


Frequentemente recebo cartas de pessoas passando por grande sofrimento. Esse sofrimento é normalmente gerado pelos acontecimentos da vida. Hoje foi uma senhora, cuja mãe está hospitalizada e será submetida a uma cirurgia de grande porte, estando em uma situação grave. Ontem era uma esposa, cujo casamento tinha acabado repentinamente e sentia-se sofrendo grande dor. Na carta dela, dor era um sentimento tão forte que escrevia, por ser da Espanha, DOLORRR, em letras maiúsculas e muitos érres. Grande sofrimento!

Essas pessoas, neste momento, procuram o Dharma. Todos sabem o que é a dor da perda e todos se entendem nisso. Apenas os muito jovens, que ainda não viveram uma grande perda ou desilusão amorosa, não sabem deste sentimento. Mas os que viveram um pouco mais, têm a experiência da perda, da morte, da doença ou do rompimento dos relacionamentos. Há um dito budista sobre o “teto do inferno” um grande amigo monge tem um blog com este título. Nós andamos no teto do inferno. Poucas pessoas poderão dizer que isto é desconhecido. Qual a característica deste andar no teto do inferno?  Normalmente é a perda, a desilusão, ou o fato que você tenta fazer algo e não consegue, um empreendimento que você tenta dá errado, e todos começam a falar mal de quem tentou e não conseguiu são os amigos que estão ao seu lado só no sucesso.

Os EUA costumam dividir as pessoas em dois tipos, as pessoas winners e os loosers , ou seja, os ganhadores e os perdedores, com um desprezo generalizado pelos perdedores. “Você é um fracassado, um perdedor”. Na nossa sociedade também, para as pessoas de sucesso perdoa-se tudo e, quando alguém  fracassa, muitas pessoas sentem-se felizes, pois isso compensa seus fracassos pessoais, então todos ficam um pouco “contentes” com o fracasso daquele grande empresário ou político. Tudo isso causa sofrimento nas pessoas, porque elas vêem o olhar dos outros, as conversas, e vêem a perda.

Mas o importante do ponto de vista budista é: o teto do inferno não é infinito. Nós andamos em um vale de sofrimento, mas ele tem um fim, ele sempre tem um fim. É difícil explicar isso para as pessoas. Hoje você tem uma perda, mas daqui a dois anos esta perda não parecerá o que parece agora, não é bem assim. Nós acabamos aceitando as perdas, absorvendo aquele sofrimento e nos conformando com ele. Existe também a benção do esquecimento, pois não conseguiríamos ficar para sempre lembrando daquela tremenda angústia, provocada por um sofrimento.
Então tenho acompanhado cada vez mais, essas perdas e sofrimentos e tento dizer: “Isto é impermanente, você vai poder superar isso”. “Não se deixe derrotar”. “Sofra, mas não se deixe derrotar completamente”. É bobagem nós dizermos para as pessoas: “Ah, não sofra, você vai esquecer isso, vai aparecer outra pessoa para você, você vai esquecer essa morte. Afinal de contas todo mundo perde pai, mãe, avós”. Isto é muita falta de sensibilidade, porque as pessoas que sofrem querem ouvir que nós sabemos o que é o sofrimento, que nos solidarizamos com elas e que compreendemos. Não estamos sofrendo com você da mesma forma, porque isso é uma mentira, mas podemos chorar juntos. E esta partilha do sofrimento é a compaixão. Compadecer-se: padecer junto.

Este é um sentimento que devemos cultivar, compreender profundamente o sentimento que o outro tem e que às vezes é incompreensível para nós, pois está longe demais da nossa experiência. Às vezes é uma doença que talvez nunca teremos, mas nós podemos padecer junto.

Esse é o melhor remédio, mostrando, de alguma forma, que o teto do inferno pode ser percorrido. Nós queimaremos a sola dos nossos pés, mas ele acaba, ele tem um fim. Ou seja, nenhum sofrimento é permanente, todos eles são transitórios.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Como um grande espelho


5)  O que fazer com os sentimentos de raiva e medo?

Saikawa Roshi – Sente-se calmamente e em silêncio. Faça zazen e, quando eles surgirem, tente pega-los. Quando surgir uma má memória, não a empurre, apenas deixe que surja. Essa é a maneira de ser uno. Se você se recusa ou tenta guardar, o self aparece. Não tente recusá-los nem tente ficar com eles, essa é a maneira de ser uno. Dessa forma sua mente vai se acalmar.

6) Eu tinha milhares de perguntas, mas é difícil até  fazer uma pergunta quando se tem uma mente condicionada.

Saikawa Roshi - Todos estamos condicionados, todos temos mentes condicionadas. Se Saddhan Hussein tivesse criado Bush desde criança, Bush seria da religião Islâmica. Se Bush tivesse criado Saddhan desde criança, ele seria um cristão. Isso é condicionamento, porque somos vazios, podemos ser qualquer coisa, como um espelho que não tem self. Qualquer coisa que surja, o espelho não tem preferência, não gosta nem desgosta, ele apenas é uno com aquilo que ele reflete. Imaginem um espelho gigante e todo o universo está nele, assim, da cabeça aos pés você é um espelho gigante que reflete todo o universo. O Sutra do Coração da Sabedoria diz que não há ouvidos e olhos, isso significa que você é isso, a vida universal. O espelho do universo ou um espelho pequeno que reflete uma bola, todo o universo está nele e em você. Você é essa vida eterna. Todo o universo está nesse espelho, em cada momento, nem uma parte está vazia, isso é vacuidade. Isso significa que o espelho é sempre vazio, então, todo o universo está nele a cada momento. Qualquer coisa que surge existe no espelho, dos pés à cabeça e tudo está vazio ao mesmo tempo. Zero é igual a infinito. Você é zero e ao mesmo tempo infinito e uma enorme vida eterna está em você, parabéns. (2005)

Muito obrigado

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Como um homem na luz mas de olhos fechados


1) Nessa maneira como eu posso explicar a sensação de “deja-vu”?

Saikawa Roshi – O que você quer dizer com isso?

Aluno-  Essa sensação de que as coisas se repetem.

Saikawa Roshi – Elas parecem a mesma coisa, mas o momento que você sente essa experiência é esse momento.

2) Devemos buscar a iluminação ou não?

Saikawa Roshi – Sem dúvida. Porque estamos iluminados mas não vemos. (Como um homem na luz de olhos fechados). Porque originalmente estamos além de delusão e iluminação, mas sua atividade mental não concorda com essa experiência. Buda levou seis anos e nossos ancestrais praticaram duramente zazen. Dogen iluminou-se na China e voltou ao Japão onde fundou Eihei Ji, era uma pessoa muito inteligente e escreveu vários livros em chinês, livros muito, muito difíceis de escrever e entender. Quando Dogen tinha oito anos já havia lido difíceis livros de teoria Zen chineses. Uma vez monge, estudou Sutras e mesmo assim não estava satisfeito, pois isso era um entendimento mental e esse entendimento mental é baseado nos opostos.

A realidade estava além destes dois lados, bom ou ruim, certo ou errado, por isso ele precisava experimentar, precisava da experiência. Isso é chamado de iluminação num pequeno sentido, mas no grande sentido ele já era iluminado, além disso ou daquilo, dentro e fora, vida e morte. Mas até que você realmente veja a realidade antes de começar a atividade mental, você nunca estará satisfeito, você precisa dessa experiência.

3) A compreensão da parte filosófica do Budismo é bastante fácil e compreensível para quem se esforça. A grande dificuldade é quebrar os condicionamentos da mente e dos atos, de sua prática diária.

Saikawa Roshi – Porque vivemos num modo dualista. Algumas pessoas pensam que a mente é o corpo. Na vida diária temos que identificar e entender as coisas. É muito fácil ser fisgado, apanhado pela mente. Do ponto de vista de Shakyamuni Buda, quero salvar os seres, mas, não posso encontrá-los, mas no ponto de vista de nossa vida prática, mesmo Shakyamuni e Bodidharma tiveram dificuldades para atingir a iluminação e permaneceram no caminho da prática. Tornar-se presente na vida diária é muito difícil.

4)  E o zazen é a forma de prática, é o caminho da prática?

Saikawa Roshi – Sim. É a maneira de ver o self e de salvar o self.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Tudo é a primeira vez



Final da palestra de Saikawa Roshi (2005)

"Que maravilhoso é viver nesta unidade, sem mudanças, mas ao mesmo tempo ver que as coisas condicionadas mudam momento a momento. Quando chegamos em Porto Alegre, alguém me perguntou: “É sua primeira vez em Porto Alegre?”, respondi, “Sim”, mas eu estava rindo dentro de minha mente porque tudo é a primeira vez, sempre, tudo é a primeira vez. Isso significa que não se pode comparar nada. Nossa vida é uma flor de um caleidoscópio, e em um caleidoscópio muitas flores aparecem quando nós o rodamos, assim como eu gosto dessa flor antes de girar, isso é uma delusão de minha atividade mental, comparando o passado com a nova flor que aparece. É impossível pôr passado e futuro na mesma mesa, porque toda experiência surge pela primeira vez e não pode ser comparada com o passado, tudo é a primeira vez.

Nesta unidade além da delusão e da iluminação é que nossa vida existe.  A flor que se forma no caleidoscópio é pequena em um caleidoscópio tão grande, e a mesma flor surgindo de novo, não pode ser comparada à flor de ontem, não se pode dizer “ontem foi bom e hoje está triste”, essa comparação é uma delusão na sua mente. Cada momento é tão fresco, nunca voltará de novo na história de todo o universo, cada coisa, um momento. Nossa vida existe nessa vacuidade, nessa sacralidade. Assim, com essa verdade é que Shakyamuni disse: “quero salvar todos os seres mas não posso encontrá-los”, porque vocês são o mesmo que Shakyamuni Buda, parabéns. " Saikawa Roshi

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Ninguém pode nos salvar

"A realidade não possui bom ou ruim, direita ou esquerda, em cima ou embaixo. Apenas as condições aparecem na nossa mente. As coisas são fáceis de entender mas, muito difíceis de serem vistas. A realidade está além de sujeito e objeto, eu e os outros, morte e vida, iluminação e delusão. Toda a realidade esta além de todas essas idéias. Assim, a delusão existe somente na mente dos seres humanos. Tudo nesse mundo, plantas, animais, água, montanhas, tudo, esta além de delusão e iluminação.  Bom ou ruim, existe apenas nas nossas mentes. A delusão existe porque usamos dualidade, bom ou ruim, começo e fim. Mas como eu disse, a base do verdadeiro “eu”, é como esta unidade, imutável.

Assim, quando Shakyamuni Buda viu a estrela da manhã e atingiu a iluminação, quando a luz dessa estrela o atingiu, ele realmente agarrou o ponto antes da atividade mental. Dessa forma ele anunciou: “É maravilhoso, é miraculoso, eu e a grande terra, com todos os seres senscientes, simultaneamente, iluminados”. E ele disse depois disso, “quero salvar todos os seres, mas não posso encontrar seres ou Budas, porque essa unidade é para todos os seres”. Somente seres humanos com suas mentes podem não concordar com ele, porque no caminho de crescer, pais implantam nas cabeças de seus filhos este dualismo e a criança é incapaz de duvidar disso quando cresce. Ele pensa que o significado da linguagem é a verdade. E para nós, na vida diária dentro do dualismo, é muito difícil ver o verdadeiro “eu” que está além da separação do “eu” e os outros, dentro e fora, sujeito e objeto, vida e morte, delusão e iluminação.

Esse estado de além de delusão e iluminação, bom ou ruim, é chamado Buda. Dessa forma todos são originalmente Budas.  Somente a atividade mental, somente a idéia da atividade mental pode não concordar com isso. Assim, nós precisamos fazer zazen para verdadeiramente experimentar isso, a unidade, e nos salvar de nós mesmos, por nós mesmos. Ninguém pode nos salvar. O trabalho do professor é apontar o caminho para a libertação, mas só você pode salvar a si mesmo, porque a delusão está dentro de você, por isso você precisa descobrir que delusão é ilusão dentro da mente."  Saikawa Roshi (2005) (continua)

Uma palestra de um mestre


"Todo mundo tem uma história. Muitas coisas diferentes acontecem à pessoas diferentes nessa história, mas a base não muda. Porque a base da história é o verdadeiro movimento do “self”. O verdadeiro movimento do “self” significa nenhum movimento, porque estamos todo o tempo com isto, unos com todo o universo. Nada dentro, nada fora. Nem sujeito nem objeto. Nem “eu” nem os outros. O que é isso? Tem um som aqui? Isso é verdade. Mas, ao mesmo tempo que você ouve esse som, o som não está aqui. Ele está em você.

A realidade está além de sujeito e objeto e além de sujeito e objeto significa unidade. Dessa forma, uma história pessoal muda muito, mas não muda nada, isso é a base da vida. Quando usamos incenso, podemos cheirá-lo; onde está o cheiro do incenso? Na fumaça? É verdade. Ao mesmo tempo que você pode sentir o incenso como bom ou ruim, você pode dizer que gosta ou não gosta de alguma coisa. Isso significa em você estar além de sujeito e objeto. Somente a totalidade e a unidade podem falar sobre o cheiro. Assim é com o gosto da comida ou bebida. O gosto está na comida? É verdade. Mas ao mesmo tempo, não é verdade. Quando você prova e diz que é muito bom, o gosto está em você e isso significa além de lá e aqui, além de sujeito e objeto e, na unidade, o gosto existe.

Da mesma forma quando sinto calor, não é uma coisa que está aqui ou ali; quando o dia está quente ou frio, está em mim, mas ao mesmo tempo é verdade que está aqui ou ali. O som, o gosto, o cheiro e o frio que sentimos, existe na unidade, quando os seres humanos começaram a usar seu cérebro para pensar coisas, para resolver problemas. Para usar o cérebro nós precisamos de linguagem e a base da linguagem é usar idéias opostas. Isto ou aquilo, começo ou fim, dentro ou fora, eu ou os outros, sujeito ou objeto, em cima ou embaixo, direita ou esquerda, iluminação ou delusão? Dessa forma os seres humanos têm tentado resolver seus problemas com sua atividade mental. Assim, quando uma criança nasce e cresce, o que os pais fazem? Colocam um nome na atividade mental, isto ou aquilo, eu e os outros. Assim, através dos anos quando a criança cresce nunca duvida acerca das idéias de isto ou aquilo, eu e os outros.

Mesmo Shakyamuni Buda levou seis anos para resolver e entender que a realidade está além da linguagem. Levou seis anos para Buda clarear sua mente e perceber que usamos a ilusão como uma ferramenta para usar a linguagem e resolver problemas. Nós concordamos que em cima é esse lado e para os japoneses embaixo é o outro lado do mundo. Para os chineses o dia é nessa direção, para outro povo é em outra. Para todo mundo é em cima e se é somente para cima, o embaixo nunca existe? Também em cima não existe. Na atividade mental se eu digo em cima e este lugar é aqui, eu preciso da idéia do oposto, embaixo. Mas se em toda a parte de todo o universo, o em cima for para cima, então o em cima não existe. Isto é vacuidade, isto é unidade e nesta unidade nós estamos vivendo além da atividade mental. Essas sequências de opostos são fáceis de serem entendidas pela atividade mental. Uma coisa boa para Bush é uma coisa ruim para Saddhan Hussein e uma boa coisa para Saddhan Hussein é ruim para Bush. Todas as coisas como direita e esquerda, em cima e embaixo são apenas coisas condicionadas e assim nós estamos usando a ilusão como uma ferramenta para resolver problemas e nos comunicarmos."   (Saikawa Roshi)  (continua)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Sempre queremos o fantástico


Pergunta – O que o budismo pensa sobre o desenvolvimento? Por exemplo, hoje em dia nos surpreendemos com o que as civilizações antigas faziam com tão poucos recursos tecnológicos. Nós regredimos em alguns aspectos?

Monge Genshô – Nós sempre queremos acreditar em coisas fantásticas. Em alguns aspectos as civilizações antigas realmente desenvolveram coisas interessantes, como por exemplo, o calendário Maia que é mais bem calculado e exato do que o calendário astronômico desenvolvido na Europa.

No entanto, eles não conheciam a roda nem o aço. O que descobrimos nas escavações são artefatos extraordinários feitos com tecnologia muito pobre ou limitados, o que exigia enorme trabalho e esforço. Só encontramos materiais feitos de ferro de 1200 a.C. pra cá, porque o ferro necessita de grandes temperaturas para ser extraído, forjá-lo é uma técnica muito difícil e trabalhosa de ser empregada para se conseguir uma resistência maior de ferro, que é fraco em estado puro. Ao ser misturado ao carbono ele começa adquirir  resistência, torna-se  aço e se tornava caríssimo, antes do  século XIX ele tinha o preço de uma jóia.

Foi a partir deste século, com Henry Bessemer, que foi criado um método de purificação do ferro onde era tirado todo o carbono e depois recolocado na medida certa, dando origem à um ferro fundido que pôde ser moldado, fazendo-se navios de aço, trilhos de trem e pontes. Nenhuma civilização anterior fez algo parecido com o aço. Temos uma tendência a querer algo extraordinário e isso acontece também no meio religioso. Meu trabalho como professor do Zen é destruir isso, pois muitas pessoas vêm para o Zen esperando coisas espetaculares e extraordinárias. Embora os mitos criem facilmente o extraordinário, não precisamos fazer isso para que o budismo dê os seus resultados, não precisamos dizer que os monges têm poderes extraordinários e fazem milagres.

Nosso poder extraordinário é não precisar de poderes extraordinários. O mito de que um homem que se transforma em Deus, ou desce à Terra como um Deus, não é um mito Cristão. É muito anterior ao Cristianismo. Quando surge o Cristianismo, um homem, Jesus, incorpora um mito e este se transforma num mito Cristão. Mas ele já existia na Índia com Krishna ou na Grécia com Hércules e os filhos dos deuses. São arquétipos humanos e existiam em toda a história da humanidade. Tentaram fazer o mesmo com Buda e existem de fato tendências budistas que divinizam Buda. Por isto sempre digo que Buda morreu de diarréia, para que todos percebam que somos homens iguais a Buda. Isso significa que qualquer um de nós pode despertar como Buda.

Esse ensinamento é muito mais difícil de ser compreendido e muito mais maravilhoso do que quaisquer milagres. Em cem anos estarei morto e muito provavelmente muitos de meus alunos diretos também, mas os alunos destes, talvez digam que ouviram falar que o Sensei Genshô podia ler pensamentos. Temos a tendência de querer tornar sobrenatural tudo que nos toca emocionalmente. Não existem passados maravilhosos e com o tempo degeneramos. Os homens nunca viveram tanto e nunca fomos tão poderosos, o que acontece é que a humanidade sempre foi insensata.

A história humana é a história da insensatez. O que acontece no nosso século é que a tecnologia que cresceu rapidamente nos últimos cem anos nos deu poderes desproporcionais em relação à nossa evolução mental. Antes os homens eram insensatos mas usavam machados; agora têm moto serra. Então as florestas são destruídas. Mas se você conseguir mudar sua mente e conseguir colocar um pouco de consciência nos governantes, usando apenas esse exemplo isolado, podemos mudar muita coisa. Vejam o Japão, tem mais florestas, proporcionalmente, que o Brasil. Tem 70% de seu território coberto por florestas, isso porque um imperador ordenou que não se cortassem mais florestas. O que temos que fazer é mudar nossas mentes para conservar esse mundo precioso. Como diz o budismo, tudo começa dentro das pessoas, por isso trabalhamos duramente para mudar nossas mentes, não olhem para fora.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Faça a oportunidade


Pergunta – O senhor falou sobre a construção do carma, mas o meio em que vivemos, direta ou indiretamente também não é responsável pela construção deste carma?

Monge Genshô – Não. Você já está neste meio em razão de seu carma. Já fez parte de seu caminho. O meio nos ajuda ou atrapalha, porém, você tem uma grande capacidade de escolha. Por exemplo, hoje, em vez de estar aqui você poderia estar num boteco bebendo. Você é livre e escolhe seus companheiros. Nós escolhemos o nosso mundo. Não podemos dizer que vivemos e agimos de determinada maneira porque nascemos em determinado país.

Pergunta – Eu falo até em razão disso mesmo que o senhor disse, a oportunidade que temos, nessa cidade, nesse bairro e com estas pessoas. Isso é muito raro. Eu moro em uma cidade distante de Florianópolis e as pessoas de lá não têm essa oportunidade.

Monge Genshô – Mas você pode montar um grupo de estudos em sua cidade e propiciar a prática para as pessoas de lá. Vocês podem sentar para meditar e ler textos. Temos grupos assim em várias cidades e estados do país. Em Joinville me mandaram uma foto com o texto: “Sentamos em Zazenkai”. E havia três pessoas. Isso é o Dharma funcionando. Isso é um gesto admirável, entendo bem como é isso, pois em Porto Alegre muitas vezes me sentei sozinho. As pessoas não desejam ir para onde as ilusões lhes são tiradas e sim onde exista uma grande oferta de compensação. Se oferecer milagres então, é certeza de casa cheia. Como o Zen não faz esse tipo de oferta, sempre há poucas pessoas. Nós precisamos de pessoas que facilitem o ensino do Dharma. Não é necessário muita coisa, apenas um espaço com almofadas e muita disposição para sentar, inclusive sozinho. Conta-se que Bodidharma ficou tanto tempo sentado sozinho em uma caverna que a parede da caverna ficou com a marca de sua sombra.