terça-feira, 11 de março de 2014

O tempo de viver é só o tempo de viver


2)  Nesse caso entra a filosofia, o pensamento, a mente e o “eu”. Então como fica a questão de como quebrar o “eu” e ao mesmo pensar filosoficamente, sendo que a filosofia tem o “eu” dentro?

Monge Genshô - Primeiro há raciocínios, é o que chamamos de “ensinamento provisório”. Primeiro raciocinamos. Basta observar para ver que você nem precisa morrer para perder seu “eu”, basta ficar doente, perder a memória, por exemplo, e não saber mais quem é, como tantas vezes já foi explicado. Mas depois, é a solução final de Buda, que não é uma solução baseada no raciocínio, mas em uma experiência mística. Ele senta para meditar e enxerga. Então, na prática, o que o budismo diz é que aquilo que Buda fez - sentar-se para meditar e perceber com clareza a verdade e dizer para o seu “eu” - “você não me enganará mais” - essa experiência é acessível por todos, todos têm a condição de Buda, todos somos Budas, só precisamos fazer a mesma coisa, sentar, meditar e acordar. Quando acordarem, subitamente grande felicidade e todos os problemas da vida parecerão bobagem, podem se evaporar como fumaça. Inclusive o grande problema da morte.

Para aquele que enxergou a unidade, a morte não existe. Posso falar isso para vocês: o medo da morte desaparece como mágica. Não tem mais importância. Por isso aquela história de um general que invade uma cidade, chega à um templo Budista, encontra um mestre e fica indignado porque o mestre não tem medo e com sua espada suja de sangue lhe diz – “Você não vê que posso lhe matar em um instante”? – e o mestre lhe diz – “E você não vê que eu posso morrer em um instante”? Existem tantas histórias de mestres budistas que simplesmente morrem – “Eu chamei vocês aqui hoje porque irei morrer” – então senta em zazen e morre.

Esse mestre tibetano que morreu no Brasil, Chagdud Rinpoche a quem visitei várias vêzes, fez suas coisas de forma interessante também. Ele estava doente, isso foi há alguns anos, há uns dez anos. Ele chamou os alunos e disse: “Eu vou dar um curso sobre como morrer”. Foram então umas duzentas pessoas fazer o curso com ele. O curso estava marcado para terminar às 18:00 hs, mas ele continuou ensinando e falando sem parar até as 22:00 hs, então levantou-se e disse – “Bem, agora eu vou embora”. Foi para seu quarto, sentou em zazen e morreu. O corpo dele continuou sentado em zazen e os tibetanos acham que não se pode mexer em um mestre que morreu assim enquanto o corpo não cair. E quando veio a Secretaria da Saúde, eles tiveram que convencer os médicos que apesar dele estar morto, o corpo não poderia ser tocado, era um sinal de respeito. Os médicos compreenderam e ficaram todos esperando. Após seis dias o corpo empalideceu e caiu. Foi então retirado para cremação.

No Zen as histórias são a vezes anedóticas Vocês viram o filme sobre o Zen onde acontece a morte de Eihei Dogen. Tem uma história muito interessante sobre um mestre que era muito brincalhão, chamou seus discípulos e perguntou-lhes – “Vocês já viram alguém morrer deitado”? – e todos responderam que sim, e – “Já viram alguém morrer sentado”? – E a resposta foi a mesma, e – “Mas e de cabeça para baixo”? – e os monges responderam que nunca haviam visto alguém morrer nesta posição. Então ele fez uma postura de ioga de cabeça para baixo e morreu. E o corpo dele não caía, então como os discípulos não queriam mexer no corpo mandaram chamar uma irmã dele. Quando ela entrou disse – “Você a vida inteira fazendo palhaçada e agora ainda morre de cabeça para baixo, saia logo dessa posição” – só então ele caiu e puderam enterrá-lo.

Essas histórias têm algo de mítico evidentemente, mas elas têm uma intenção ao serem contadas. É que nós levamos tudo muito a sério, e parece na realidade, que no Zen nunca se levou muito a sério essa questão. Como dizia Dogen – “O tempo de viver é só o tempo de viver, o tempo de morrer é só o tempo de morrer”.