quarta-feira, 30 de abril de 2014

Colocar os olhos de Buda


Aluno – Achei a cerimônia de hoje muito bonita…

Monge Genshô – Esta é a cerimônia de Uposata. Vem dos Upasakas e Upasikas, os praticantes leigos. Esses são os votos que esses praticantes deveriam fazer. Os votos são muito bonitos. Se você prestar atenção, seguí-los é praticamente impossível. Muito difícil! “Cuidar de todas as formas de vida”. Não só dos seres humanos, mas de todos os seres. Se você for realmente responsável e começar a pensar no sofrimento de todos os seres envolvidos, verá que tem que ser muito cuidadoso. Cada um daqueles votos, são eticamente muito profundos. O que nós conhecemos como mandamentos religiosos são muito leves, perto dos votos. São, de fato, muito significativos.

Pergunta– Gostaria que o Senhor comentasse um pouco sobre o Sutra do Coração.

Monge Genshô – “Oh Shariputra, forma é vazio e vazio é forma. Vazio nada mais é do que forma, forma nada mais é do que vazio”. Este é o centro do Sutra do Coração da Sabedoria. Se você entender esta frase, promete o Sutra, livra-se de toda dor e sofrimento. Nesse texto (publicado no blog), eu expliquei que toda vida é um ciclo, um fluxo. Nós olhamos inícios, mortes, etc., mas na verdade a vida é um ciclo. Nós morremos, viramos adubo, crescem plantas, plantas viram frutos, comemos o fruto, etc… Nós olhamos uma floresta e vemos um reciclar contínuo. Quem olha os eventos particulares vê nascimento e morte. Em uma floresta há muita morte acontecendo, certo? Troncos apodrecendo, animais que nascem e morrem. No entanto, nós olhamos a floresta e vemos sua beleza. Da mesma forma a vida humana, nós vemos os inícios e fins. Por não observarmos a continuidade das coisas, vemos tudo começando e terminando, e tudo tão sofrido, logo, achamos que a vida não vale a pena. Perdemos, de fato, a visão do todo.

Seria como uma pessoa na floresta chorando a folha que cai, ou outra na beira da praia chorando as ondas que quebram. A beleza nada tem a ver como começos e fins, a beleza da vida está na continuidade. Então o vazio de um eu é forma, as formas são todas manifestações da vacuidade. A vacuidade é ausente de um eu, logo, não há eu em coisa alguma. Só existe o vazio, que é belíssimo, pois é o próprio céu azul. Despertar é trocar nossos olhos e colocar os olhos de Buda. Aqueles que colocam os olhos de Buda, vêem o nirvana, que é aqui. A diferença não está no mundo e sim nos olhos.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Uma xícara de café



7) O que exatamente faz um Bodhisattva, como é sua vida?

Monge Genshô- Temos o Sutra de Vimalakirti que fala que os bodhisattvas são comerciantes, generais, soldados, imperadores, ou seja, qualquer pessoa que aja com mente compassiva. “Satva” quer dizer “Ser” e “Bodhi” “Mente Compassiva”. bodhisatva é aquele ser de mente compassiva que age no mundo para diminuir o sofrimento. Um bodhisattva pode viver uma vida inteira para um único ato. Há uma história de que gosto muito que se chama “Um café em Istambul”. Um bodhisattva nasceu, estudou, fez faculdade e tornou-se garçom de um Café em Istambul. Um dia um homem entra no café e dirigindo-se ao balcão e pede uma xícara. O nosso garçom então prepara o café, leva para ele e o olha profundamente nos olhos. Naquele momento o homem olhando nos olhos do bodhisattva percebe toda sua profundidade, o que lhe desperta um grande e bom sentimento que será transformador de sua vida. O olhar bondoso do garçom. O homem vai embora e o bodhisattva depois de alguns anos morre. Toda sua existência foi para dar aquele olhar.

Esse é o ato e a vida de um bodhisattva. Eu ouvi a história de um homem que foi conversar com uma prisioneira. Todos a tratavam com grande desprezo. Este homem preparou então dois cafés e foi conversar com ela. Ele era carcereiro. Ao receber o café, a prisioneira começou a chorar e disse: “Espere um pouco”, ela foi então ao canto de sua cela e trouxe os cacos de uma xícara que ela havia quebrado e com os quais iria cortar os pulsos. Uma simples xícara de café ou um olhar podem mudar uma vida. São exatamente o conteúdo do ato de um bodhisattva.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Em uma vida passada...


5) O senhor poderia falar um pouco mais sobre as reencarnações de Buda?

Monge Genshô – Lembrem-se que no budismo não usamos a palavra reencarnação. Eu prefiro as “manifestações do carma” que formaram Buda. Temos muitas histórias, muitas delas infantis, bem como alguns sutras que narram as vidas passadas de Buda. Vidas passadas é uma explicação fácil, na verdade cada vida dessas teve um “eu” que nasceu, morreu e esqueceu, permanecendo apenas uma onda de impulsos e desejos. Uma onda cármica com uma personalidade que se manifesta em um novo corpo que ele mesmo, na sua condição histórica, no país e família diz para si mesmo: “eu sou”. É uma vida passada, mas não é o mesmo “eu”.

Numa vida passada eu era uma pessoa muito agressiva. Me lembro bem de uma ocasião em que peguei dois homens bêbados que entraram no escritório que eu trabalhava insultaram uma funcionária e os joguei escada abaixo, nessa época eu praticava karatê. Me lembro também de ter chutado a porta de um carro porque o motorista não parou para eu passar na faixa de pedestre. Nessa atual vida passada, meu nome era Petrucio Chalegre. Passados alguns anos de prática do Zen, recebi o nome de Genshô e nessa nova vida e personalidade é inimaginável que eu chute portas de carros ou jogue pessoas escada abaixo. Agradeço essa oportunidade de, numa mesma vida, mudar de nome e personalidade. Somos capazes de mudar nossas vidas e dessa forma mudar nosso carma.

6) Dá para dizer então que nas manifestações anteriores de Buda ele tenha sido um bodhisattva?

Monge Genshô – Em alguns sutras ele diz, “Em uma vida passada quando eu ainda era um bodhisattva...”. A prostração que fazemos ao colocarmos as mãos com as palmas voltadas para cima ao lado do rosto é uma alusão à uma história de Buda. Conta-se que numa vida passada havia um buda chamado “Buda Dipankara” e este vinha caminhando quando se deparou com uma poça de lama, um jovem então agachou-se e encostou a testa no chão elevando suas mãos com as palmas voltadas para cima ao lado do rosto para que o Buda pudesse apoiar-se nele e atravessar a poça. O Buda Dipankara voltou-se para o jovem e disse: “Daqui a quinhentas vidas você será um buda”. Esse jovem era Sidharta Gautama. Essa é a lenda da prostração e quando a fazemos, é para que Buda caminhe sobre nós para ajudar os outros seres, somos pontes para os passos de Buda. É interessante a ligação entre todos os conceitos das religiões, por exemplo, o Papa Católico é chamado Pontífice, que significa construtor de pontes. No caso deles, construir pontes entre os homens e a divindade.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Nada está perdido


3) Essa sequência histórica é construída artificialmente ou foi assim mesmo?

Monge Genshô –  A sequência histórica de Buda até Bodhidharma é provavelmente uma construção posterior, uma dedução, embora exista um livro chamado “Denkoroku”, que narra os acontecimentos de transmissão desde Buda com suas circunstâncias históricas e biografias. Há vários documentos antigos a respeito, Biografias do Bosque do Tesouro ( Pao-lin tch’uan) de 801 DC,  Biografias dos monges eminentes dos T’ang (T’ang kao sêng tchuan) de Tao Hsiuan (Daoxiuan, 597-667) assim como  Anais da transmissão da luz da lâmpada (Tch ‘uan-ting lu) de 1004 e  Relato da transmissão do Tesouro da Lei (Tchuan fa pao ji) de 721, obra de Tu Fei (651 - 739).

Alguns personagens são rodeados de lendas, como Bodhidharma. Principalmente nas histórias indianas há muito mito, mas a partir da China a história começa a ter um caráter mais límpido. Para nós que recitamos os patriarcas é importante reconhecermos a sequência da transmissão como uma tradição relevante.


4) Com relação ao que o senhor falou na palestra, o absoluto e o relativo,  esses momentos que já estão na memória são destruídos e só o que temos de verdade é o momento presente?

Monge Genshô – Temos na física um paralelo bastante interessante.  Se observarmos os anéis de Júpiter, eles possuem ondulações e se formos voltando no tempo e reconstruindo o que aconteceu até chegarmos a sua origem, teremos a data em que o cometa Shoemaker-Levy 9 caiu em Júpiter em 2009. Através de um modelo matemático você consegue ter a origem das ondulações. Qualquer coisa que você faça gera um registro de consequências, é como se o universo fosse um gigantesco disco rígido onde tudo fica registrado de maneira que, se você volta no tempo, pode ver o que aconteceu antes, nada está perdido.

Na Escola Yogacara existe o conceito de “Alaya Vijnana”, que é a consciência depósito do universo, onde tudo fica registrado. Uma vez uma pessoa que estava morrendo veio até mim com um sentimento de imenso pesar, pois ela imaginava que com sua morte tudo estaria perdido, o amor de seus filhos, de seu marido e seus familiares, na cabeça dela tudo pelo que havia passado e o amor que havia sentido estaria tudo apagado e sendo assim, nada do que passou e mesmo todo o sofrimento teria sido em vão, tudo estaria perdido com um cérebro que se apaga.

Não é assim, nada está perdido, nosso cérebro se apaga, mas o universo não. Tudo está permanentemente disponível e de alguma forma pode ser recuperado. A lenda conta que Buda quando se iluminou lembrou-se de suas quinhentas vidas. Como pode ser isso? Podemos lembrar-nos de tudo, pois nada está perdido, o que não temos é o “acesso”, mas se você desenvolver o acesso, conseguirá.

Por isso devemos tomar muito cuidado com o que fazemos, falamos e até mesmo pensamos. Só existe carma porque existe continuidade de nossas ações e pensamentos, portanto, também do registro. Em última análise, o registro das causas é sua consequência. Em algum momento esse chá foi quente. Onde foi parar o calor que estava nesse chá? Desapareceu? Não, ele ainda existe dissolvido no ar, só não pode ser acessado facilmente.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Só nós temos consciência?


1) Por que diferentemente de todos os outros seres da natureza nós temos consciência?

Monge Genshô – Mas eles têm consciência, apenas é mais fraca. Eles também sofrem, têm medo, amam e temem a morte. Quem pode afirmar que animais não sentem saudade e não sofrem a morte de seus companheiros ou donos? Acontece que o homem está degraus acima no exercício de sua consciência, mas essa consciência que lhe dá o conhecimento de sua finitude, lhe traz também uma angústia existencial que o animal não sente. Por isso o homem cria religiões e crenças, que são uma forma de escapar da angústia existencial. O budismo se recusa a dar ao homem uma solução fácil como eternidade ou um nada após a morte.

2) A gente sempre ouve falar da influência do Zen nas artes japonesas, até mesmo nas artes marciais, como é possível praticar o Zen dessa forma?

Monge Genshô – Esse Zen que estamos falando você não vai praticar integralmente através das artes marciais. Realmente o Zen influenciou de forma intensa tanto as artes chinesas quanto as japonesas. Com a prática da arte marcial você pode ganhar disciplina, sensibilidade, auto-controle e pode  mesmo desenvolver o “ki”, forma de energia, que o ajudará na pratica do Zen. Quando você desenvolve sua sensibilidade é natural que seja levado à prática espiritual. Porém as artes, mesmo as fortemente influenciadas pelo Zen, não o levarão sozinhas à iluminação. Não são práticas para a iluminação, são somente artes influenciadas filosófica e espiritualmente pelo Zen como um caminho. Os mestres marciais que desenvolveram grande qualidade espiritual não praticavam somente arte marcial. Temos exemplos de Mestres Zen que foram grandes artistas, como Monge Ryokan, um mestre da Escola Soto que era um grande calígrafo e poeta. O fundador da Escola Soto no Japão, Mestre Dogen, era um poeta maravilhoso. Monge Takuan escreveu e influenciou muito um grande mestre da espada.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Tudo sempre esteve e estará contido



A relatividade do mundo diz que a terra na mão do oleiro se transforma em vaso e que o vaso irá um dia quebrar, se transformar em cacos e jogado fora, uma vez na natureza será reciclado para quem sabe um dia novamente seja transformado em vaso. No mundo absoluto, tudo sempre esteve contido, o vaso sempre foi argila, a argila sempre foi terra, sempre foi caco, tudo sempre foi, aqui na Terra, a mesma coisa.

Nós todos somos seres constituídos de hidrogênio, oxigênio, ferro, cálcio, carbono, estamos há muito tempo no universo. Todos os nossos agregados estão por aí há muito tempo, mesmo antes da Terra existir, há bilhões de anos. Somos reciclagem. Essa reciclagem é o relativo e nosso absoluto é nossa eternidade, pertencemos ao universo e, neste sentido, somos eternos. Precisamos integrar essas duas visões e ver a identidade do relativo com o absoluto, relativo e absoluto são uma coisa só.

Todo esse fluxo de mudanças constantes é nossa relativa existência, em termos absolutos é a própria dimensão suprema. Eterna. Temos olhos somente para a dimensão histórica, o passado o hoje e o amanhã, e para as dores e sofrimentos do mundo relativo. Quando você percebe o absoluto, todo sofrimento desaparece assim como desaparece nascimento e morte, sabedoria e ignorância. Nosso grande desafio é andar no mundo relativo conscientes do mundo absoluto. Saber que andamos no mundo e que estamos aqui praticando e nos esforçando, mas que na verdade já somos seres potencialmente iluminados, apenas ainda não percebemos nossa possibilidade. Ela está disponível. 

terça-feira, 22 de abril de 2014

A natureza relativa e absoluta do mundo




Existe algo precioso nos retiros que é a oportunidade de experiências e muito me alegra quando as pessoas me falam de suas próprias experiências. Nas entrevistas é muito mais importante o que você leva, do que fazer perguntas. As perguntas podem ser mais úteis durante as palestras, mas nas entrevistas o mais interessante é mostrar o resultado de nossa prática no zafu ou mesmo em nossa vida. Isso é muito importante para que você possa receber alguma orientação de como prosseguir.

O budismo é experiência acima de tudo. No Zen isso é ainda mais radical, pois em algumas escolas as escrituras são consideradas de tal forma importantes que chegam a ser colocadas sobre o altar, de maneira que as reverências são feitas também para as escrituras. Para o Zen as experiências dos outros são inúteis para nós, a menos que tenhamos grande humildade em ouvir as experiências dos outros e aprender com elas de modo que nos sirvam de guia.

É bom que tenhamos professores com idade avançada e grandes experiências, pois  quando o aluno levar suas experiências até o Mestre este saberá do quê o aluno fala. Muitas vezes poderemos fazer uma pergunta ao Mestre e sua resposta será voltada para nosso despertar. No Zen existe uma tendência para chocar o aluno, uma vez um discípulo ia para o banheiro e encontra o Mestre saindo do banheiro. Antigamente os banheiros eram do lado de fora e não passavam de fossas que de tempo em tempo eram limpas com pás. O aluno então pergunta ao Mestre: “O que é Buda”? O mestre olha em volta, aponta para uma pá ainda suja e diz: “Esterco seco na pá”.

Essa é uma clássica resposta Zen. As pessoas gostam de fazer distinções, sujo e limpo, felicidade e tristeza, dor e prazer, isso de fato não existe, Buda não está somente aqui no Zendo e ali no altar em forma de estátua. Buda é uma experiência que está em todos os lugares, está no esterco seco na pá. Se você conseguir ver que o esterco na pá irá se transformar em adubo, que o adubo ajudará a fertilização de vegetais e flores e que tudo está interconectado, que nada existe separado, o alimento colhido na horta será comido e se transformará novamente em adubo, então você entendeu.

De um ponto de vista, nós somos adubo e temporariamente estamos ocupando corpos, mas sofremos de uma doença terminal chamada vida. Mas nossa mente quer distinguir. Sofremos pelas pessoas doentes que irão morrer porque não conseguimos ver com clareza o ciclo transcorrendo continuamente. Nos entristecemos pois só vemos aquele momento, embora ele seja inevitável. Isso não significa que aqueles que enxergam os ciclos e têm a capacidade de aceitar a dissolução de todas as coisas, não sofram e não devam chorar pelos mortos, não compartilham o sofrimento. Essa pessoa também se comove e chora. São dois lados - de um lado há a relatividade do mundo e do outro a natureza absoluta do mundo.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Os ventos após a morte


5) No ultimo zazenkai em Joinville falávamos sobre as dores do zazen e do retiro em si e o senhor falou que sem um corpo seria muito difícil praticar. Poderia explicar isso melhor?

Monge Genshô – Quando você está sonhando, sua mente vai para todos os lugares. Você não consegue ficar aqui nesse momento, pois não tem a âncora que é um corpo. Na morte nossa consciência perde o ”eu” e é arrastada pelo carma.

6) Mas ainda existe a consciência após a morte.

Monge Genshô –  Existem apenas nossos impulsos, desejos e apegos. É nossa natureza que deseja se manifestar e para isso ela transita de um lado para outro procurando se manifestar por aquilo que se sente atraída. Não há nada que a segure, não existe uma âncora. Nosso corpo é nossa âncora, o levamos para o zafu, olhamos para a parede e dizemos que não levantaremos, mas nossa mente pode levantar e sair a vagar, nosso corpo não. Quando você não tiver um corpo será arrastada pelos seus desejos e apegos até encontrar onde se manifestar e será onde estes desejos e apegos se sentem atraídos.

Por isso estamos aqui, nos sentimos atraídos para estarmos aqui. Não existe efeito sem causa, raciocinem, por quê estamos aqui? Por quê nossas personalidades se manifestaram neste corpo, nesse país, nesse mundo, nessas condições? Por quê me sinto atraído por esse local e por esta maneira de viver? É lógico, não é? Estamos aqui por nos sentirmos atraídos para esse tipo de lugar, nossa personalidade, desejos e impulsos vieram de algum lugar. Da mesma forma que somos responsáveis por todo nosso futuro, assim é com nossa vida aqui na Terra. É incrível que tenhamos nos sentido atraídos pelo sesshin. Tem que haver uma marca dentro de nós para nos induzir a procurar esse tipo de lugar. É um lugar muito puro onde tudo que é falado é voltado para o bem e para o desenvolvimento da consciência. Toda nossa vida é assim, procuramos pessoas com os mesmos gostos que nós. Quando não tivermos mais esses corpos algo irá querer se manifestar e, de acordo com a mente que construímos, iremos definir a continuação. Por isso é tão importante a construção de nossa mente e é isso que fazemos no sesshin, tentamos construir todo nosso futuro, que é a construção da própria felicidade.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Indo para sentimentos mais elevados



3) O senhor falou agora sobre a felicidade. Ela pode ser eterna? Até onde eu entendi tudo na vida é transitório.

Monge Genshô – Buda recusou duas idéias - eternalismo e nihilismo - o budismo é o caminho do meio. Pela própria definição do que é a vida, nada pode ser eterno. Existem vários estágios de clareza para serem atingidos, a iluminação tem muitos degraus. Embora você tenha um insight e atinja um kenshô, isso não significa que em toda sua vida você agirá perfeitamente sem perder a paciência ou que não surgirão pensamentos dentro de você. Talvez a diferença seja que você olha para você mesmo e perceba isso acontecendo.

Conforme você avança na prática, haverá o dia em que estes sentimentos não mais se manifestarão e seus atos transparecerão este estado mental. Tudo sempre continua, não igual, mas mudando, e pode haver um dia em que você não caiba mais em um corpo humano. Haverá a necessidade de outro estado, talvez não necessariamente no mundo da forma. Apesar de se falar nisso no budismo, isso para nós agora é só teoria, pois estamos envolvidos nas coisas mais comezinhas, mais bobas e dos sentimentos mais tolos. No entanto se conseguirmos sair deste tipo de sentimento para sentimentos mais elevados, esta será uma vida mais feliz.

4) Eu li em um livro uma vez algo sobre quando você toma consciência de como você é, você consegue mudar, é assim que funciona, à medida que você vai percebendo as coisas você vai mudando?

Monge Genshô – O simples fato de perceber ajuda imensamente, pois isso significa uma auto-crítica, já é um primeiro passo. Quando você sabe que está fazendo algo errado, já é muito bom.

Estudar e compreender a si mesmo são coisas muito importantes. Dogen disse que “estudar o Zen é estudar a si mesmo e estudar a si mesmo é esquecer-se de si mesmo”, então, quando você conseguir esquecer-se de si mesmo, seus erros e suas dificuldades, esse sim será um enorme passo, pois enquanto você estiver olhando para si mesmo ainda existe uma grande noção de um ego.

Nós estamos num sesshin e se ocorre a você um pensamento do tipo “por que eu estou aqui?”, isso é um “eu” pensando. O correto seria você sentar quando tem que sentar, comer quando for para comer, ir ao banheiro quando tiver vontade e em momento algum pensar no “eu” e nos motivos que o fazem estar aqui, esteja simplesmente aqui com todos os outros, fazendo o que todos estão fazendo. Se você conseguir esse nível de sentimento é um grande passo.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Esfriando vontades e apegos



2) As diversas percepções e sensações que aparecem podem ser eliminadas pela simples prática?

Monge Genshô – Sim. O fato de praticar imóvel eliminando pensamentos sobre passado e futuro acaba por esfriar nossas vontades e apegos. Do contrário, se você sentar a alimentar suas fantasias, elas crescerão. Sentados corretamente imóveis temos a oportunidade de voltar ao presente momento, que é o único que verdadeiramente existe. Passado e futuro não existem de verdade, são construções de nossa mente. O passado aconteceu, mas o que temos deles são lembranças. O futuro é imaginação. A prática do zazen pretende criar as condições para que os insights aconteçam e desta forma vermos as coisas com mais clareza e lucidez. Não procurem coisas fantásticas ou maravilhosas na iluminação. Na iluminação as coisas são exatamente como são agora, nosso sentimento a respeito das coisas é que mudaram. Isso é difícil de explicar porque está além das palavras, é o mesmo mar, mas é diferente. Mais belo e profundo, sem outro significado além daquele que está ali na nossa frente.

A vida e as pessoas também são da mesma forma e, se você tiver um sentimento iluminado, abraçará a Sangha como se todos fossem seus irmãos, não haverá lembranças desagradáveis e sentirá carinho por todos. Assim são as experiências de kenshô, mudanças de visão, nada mais, a realidade pura e límpida, sem julgamentos ou pensamentos estranhos que nos invadem sobre tudo e todos. Assim é a mente clara e lúcida que desperta do sonho. Um sentimento de grande paz e felicidade, não euforia.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Gestos ritualizados e seu significado



1) O senhor comentou sobre os gestos vazios, quais são os significados das reverências que fazemos quando entramos no Zendo e de quando vamos sentar no zafu?

Monge Genshô – Quando entramos na sala, reverenciamos a sala, o local da prática. Temos nesse local uma estátua de Buda a nos lembrar de que um mestre, Shakyamuni Buda, existiu e nos ensinou este tipo de prática. A reverência não é para a estátua em si, mas sim para o local, quem faz deste um lugar especial, somos nós. Basta não ter olhos de ver para transformar em vidro um raro diamante. Nós, através do nosso conhecimento é que damos valor às coisas.

Quando vamos sentar no zafu fazemos uma reverência e nos conscientizamos de tudo que foi necessário acontecer para que o zafu estivesse onde está para que possamos sentar e praticar. Após isso giramos e fazemos nova reverência, desta vez para todos nossos colegas, como a pedir desculpas por todos os sons que iremos emitir e porque vamos nos mexer e perturbá-los. Cada gesto deve ter dentro de si esta reverência e temos mais que isso, temos que levar esta reverência para nossos lares. Quando você abre o chuveiro na sua casa, sai água, você deve ter reverência por tudo que tornou possível você ter seu banho confortável de água quente. Cada coisa que existe em sua casa, cada conforto, tem por trás muita morte e sofrimento. Por isso no sesshin fazemos tantas reverências. E a cada reverência temos que nos lembrar porque é assim.

Todos os rituais foram criados pelos mestres para nos ensinar e nos lembrar de algo. Todas essas batidas (bate com a mão na mesa reproduzindo o toque no Umpan) devem passar a sensação da vida se esvaindo, cada vez mais rápido e mais fraco. Cada vez que ouvirem lembrem-se do motivo pelo qual as batidas seguem esse ritmo. Assim como quem bate não deve bater de qualquer jeito, tem que colocar um significado no que faz.


segunda-feira, 14 de abril de 2014

Por trás de um grão de arroz


É importante que revisemos a importância das cerimônias e alguns de seus significados. Por exemplo, quando recitamos os refúgios, devemos ter um sentimento de gratidão por estas três jóias. O Buda, um ideal, um homem que conseguiu se elevar por seus próprios meios. O Dharma, o ensinamento, a lei e a sabedoria. A Sangha, que em contraposição em levantar-me por meus próprios meios, significa que na verdade necessitamos muito uns dos outros. Sem as três jóias a prática seria impossível. Dificilmente sentaríamos para praticar por tanto tempo sozinhos, fazemos isso porque existe uma estrutura a nos apoiar e conduzir. Todos nós, unidos, temos uma força que é maior que a força individual de cada um. Isso serve para todos, inclusive monges e professores, eu não sentaria tanto tempo se não estivesse com vocês, minha prática é sustentada pelos alunos.

Há também na cerimônia um momento muito importante de gratidão e reverência que é quando recitamos os nomes dos patriarcas e ancestrais desde Shakyamuni Buda até o momento presente, ou então até os cinquenta e sete primeiros, terminando em “Keizan Daiosho”, que foi o grande organizador da Soto Zen. Foi ele quem adaptou o Zen à cultura japonesa e também trouxe muitos monges de outras ordens para a Soto Zen.

Outro momento importante do sesshin são as refeições com oryoki.  Esse tipo de refeição formal e cerimoniosa está cheio de agradecimentos. Agradecemos todos os esforços que fizeram com que o alimento chegasse até nossa mesa. A cada vez que um jonin, a pessoa que nos serve, vem à nossa frente, devemos fazer gasshô. Mas esse gesto de gasshô não deve ser vazio, pois o jonin é o último elo de uma imensa corrente que trouxe o alimento até minha tigela. Se formos regredindo a partir do jonin poderemos chegar até um homem no mar explorando gás, que pode ser o mesmo gás que ajudou a fazer a comida que comemos.

No campo também estão envolvidos os animais de tração, os agricultores e até mesmo as minhocas que revolvem a terra. De uma maneira ainda mais abrangente temos todas as plantas do planeta que produzem o oxigênio, sem o qual o fogo não seria possível. Engenheiros, agricultores, mecânicos, produtores, transportadores, vendedores e carregadores, todos estão envolvidos na produção desse alimento, então, em cada grão de arroz há sofrimento, dedicação, esforço, lágrimas e morte. Mesmo nossa comida sendo vegana nós matamos para comer, pois aramos o solo, derrubamos florestas para abrir campos de cultivo, nada do que está em nossa frente para comermos é inocente, tudo tem sofrimento e dor envolvidos. Por isso não jogamos fora nem um grão de arroz, raspamos a tigela com pão, lavamos com água quente e a bebemos.

As pessoas que comem sem pensar sobre tudo isso estão perdendo seu próprio elo com a natureza. Nossas vidas humanas são extremamente preciosas. Nós todos fizemos grandes esforços para virmos até esse sesshin. Em um nível mais profundo, construíram carma durante milhões de anos para estarem sentados nesse sesshin. Muitas vezes desperdiçamos tolamente nossas vidas sem prestar atenção a tudo que esteve atrás de nós, toda dor e sofrimento que nos possibilita estarmos em pé. Lembrem-se, todas as vezes que fazemos prostrações, estamos agradecendo a Buda, aos ancestrais e a todos os seres por estarmos aqui tendo a oportunidade de praticar e despertar, e também pela oportunidade de sermos felizes, pois a felicidade está disponível. Não somos felizes por construirmos infelicidade com nossa cegueira e por não enxergarmos tudo que existe por trás de um grão de arroz.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

O céu azul não é perturbado pelas brancas nuvens que passam


 4) Às vezes quando estou mergulhada no zazen, um único fio de pensamento parece querer me tirar deste estado, não parece um pensamento, parece uma consciência conversando comigo, me apontando os defeitos e me criticando.  O que é isso?

Monge Genshô – É você mesma, mas você não deve tentar lutar com nada que surja em sua mente, não tente ficar sem pensar. Esse é um erro comum. Quando o pensamento surgir apenas o deixe ir da mesma forma que chegou. Não o agarre, não o siga e, principalmente, não faça encadeamento de idéias.

O céu azul não é perturbado pelas brancas nuvens que passam. Deixe as nuvens, pensamentos, passarem, surgirem e desaparecerem. Qualquer que seja o pensamento, de ódio, raiva, amor, paixão, você não deve se sentir culpada por tê-los. O pensamento é apenas um borbulhar de sua mente. Os pensamentos que surgem em nossa mente estão ali porque em algum momento foram alimentados com aquele tipo de idéia. No zazen você apenas senta, não tente ser ninguém, não tente ser uma boa pessoa, apenas sente.

Durante o zazen não estamos criando muito carma, estamos imóveis, porém, se você alimentar algum tipo de pensamento irá gerar carma, pois está construindo uma mente, não tente construir nada, apenas sente e tente ficar no aqui e no agora. Isso é extremamente desafiador. Sentado você está tentando criar condições na sua mente na qual podem aparecer as experiências místicas, ficando imóvel, calado e no momento presente. Essas experiências de clareza e lucidez são as coisas que desejamos enxergar, mas para isso precisamos de uma mente limpa e a maneira de limpar não é não pensando, pois não pensar é um pensamento. Apenas deixe acontecer. Tetsugen disse que quando você conseguir ficar 40% do tempo de seu zazen em samadhi, com a mente limpa, pensamentos vindo e indo sem que você os toque, o despertar se aproxima.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Invisível para os olhos comuns


3) Imaginando que entrasse nessa sala agora um ser totalmente desperto, nós conseguiríamos perceber?

Monge Genshô – No século XX o cientista mais reconhecido talvez tenha sido Albert Einstein. Ele era uma pessoa brilhante desde criança, porém um de seus professores disse que ele não seria ninguém na vida, foi reprovado em um vestibular embora suas notas altas em exatas. Foi recusado como professor de física na Universidade de Berna porque não tinha diploma universitário, tinha apenas um diploma de técnico do curso que havia feito na Escola Politécnica de Zurique. Trabalhava no sistema de Patentes e era um funcionário de terceira classe. Em 1905, ainda como funcionário de terceira classe, escreveu cinco trabalhos e entre eles estava a “Teoria da Relatividade”, um artigo sem notas de referência a ninguém, um trabalho totalmente novo.

Descreveu também o “Efeito Foto Elétrico”, o Movimento Browniano onde explicava porque as partículas não param de se movimentar. Qualquer desses trabalhos era suficiente para ganhar o Prêmio Nobel, fato que aconteceu para o Efeito Foto Elétrico. Em 1917 ele escreveu a Teoria Geral da Relatividade. Antes de todos esses trabalhos ele não havia tido qualquer tipo de reconhecimento. Seu trabalho sobre a Teoria da Relatividade não recebeu o prêmio Nobel, pois não foi compreendida integralmente pela Academia Sueca que cogitaram a possibilidade de que ela estivesse incorreta, por isso ele recebeu o prêmio pelo Efeito Foto Elétrico, era algo que eles conseguiam entender.

Hans Kilian, famoso cirurgião alemão, conta em sua autobiografia que era um adolescente muito alto, acima do normal e seu professor de latim sempre o ridicularizava e o chamava de burro “sic longus, sic stultus” (tão alto, tão tolo). Quando pensamos no caminho espiritual, se eu lhe perguntasse se você concorda que Jesus Cristo foi um grande líder espiritual, o que você diria? Sim, não é? E o que fizeram os soldados romanos? Você acha que se eles vissem que ele era uma pessoa iluminada o teriam tratado daquela forma? Bodhidarma esteve frente a frente com o Imperador Wu, mas este não o reconheceu como um grande mestre, até que escreveu um poema que dizia: “Eu o vi, sem ver”.

Havia pessoas que chegavam a desafiar Buda e até quem tentasse matá-lo. Se ao olhar para uma pessoa fosse claro ou houvesse uma espécie de luz dourada em volta, isso não aconteceria.  Só consegue ver a iluminação quem é iluminado. Aos olhos de alguém que conseguiu uma realização espiritual, quando surge uma pessoa que também obteve uma realização, ele consegue perceber. As vezes a própria pessoa ainda não percebeu.

Saikawa Roshi uma vez me disse que estava na Espanha e durante uma entrevista encontrou uma pessoa iluminada. Ela sentou-se à sua frente no dokusan e lhe disse: “uma vez eu morri”. Através de uma série de perguntas ele pode confirmar que aquela pessoa havia despertado. O despertar precisa ser testado e só quem pode fazê-lo é quem sabe, quem já passou pela experiência. Muitas outras experiências também são assim, se você já amou e uma pessoa vem lhe falar de amor você imediatamente sabe do que ela está falando.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Coração e mente


Saikawa Roshi, um grande mestre.

Uma vez, aqui mesmo neste local, uma senhora passou e nos viu fazendo zazen, depois comentou com uma praticante: “Como vocês podem ficar o dia inteiro com a cara enfiada na parede? Que monótono”. Somente nós que ficamos o dia inteiro com a cara enfiada na parede e percebemos a quantidade de coisas que emergem e se mexem em nossa mente, sabemos que ficar ali não é monótono. Há muita coisa acontecendo dentro daquelas pessoas sentadas quietas com a cara enfiada na parede. Vocês sabem que dentro de vocês há infinitas coisas acontecendo, há muito assunto para resolver.

Um algumas  escolas existe um retiro onde o praticante é colocado dentro de uma caverna e pratica meditação o dia inteiro, recebe refeições diárias e isso acontece durante três anos. No Zen também existem histórias de retiros assim, Bodhidharma ficou nove anos em uma caverna. Precisa de tempo para aprender algo sobre si mesmo. Nossos retiros são de tempo insuficiente para depurarmos nossa mente. Mas o sesshin é mais uma preparação, no zazen nós preparamos o terreno e é mais provável que lá fora, após o retiro, vocês possam ter um insight, é esse tipo de experiência que estamos procurando, experiências não expressáveis com palavras, mas uma percepção de que algo mudou.

A paisagem é a mesma, mas a maneira de percebê-la é diferente. Antes você olhava para uma montanha e apenas a via, depois você será capaz de ouvi-la. Se você for capaz de ouvi-la, conseguiu algo inenarrável. É por isso que as pessoas sofrem nos retiros, mas estão sempre retornando. Alguma coisa aconteceu.

PERGUNTAS

1) Como funciona essa relação coração e mente? Se o coração é a casa do sentimento como é possível acessar isso?

Monge Genshô – Todos os sentimentos também são construídos. Amor, ódio, paixão, tristeza, alegria e felicidade são construções de nossa mente. Coração e mente são uma só coisa, em japonês elas têm o mesmo radical “shin” formando o “kanji”. Há uma famosa frase “ISHIN DEN SHIN”, que significa “de mente para mente” ou “de coração para coração”, nesse sentido mente e coração são indistinguíveis.

O que temos que perceber, e que às vezes é muito difícil, é o quanto de construção tem em cada coisa. Pensem no seu primeiro amor, quando você olhou para uma pessoa e se apaixonou, imediatamente projetou uma série de sonhos e ideais. Tudo que você construiu a seguir foi pensando nisso. Há muita fantasia e construção nisso, mas conforme o tempo vai passando vamos percebendo que as coisas não são exatamente como foram construídas. A relação será mais bem sucedida se não forem acalentadas demasiadas ilusões e principalmente se você vir que a outra pessoa é apenas um ser humano. Com o professor do Dharma é a mesma coisa, muitos o colocam como um ser superior e infalível o que é um tremendo engano. Por um lado devemos ter grande reverência pelo manto de Buda, mas por outro lado não devemos criar um culto à personalidade. Nós gostaríamos que os sentimentos fossem surgimentos maravilhosos, mas eles são construídos e coração e mente são uma coisa só.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Quem te impede de ser feliz?


Buda colocou o foco de seu treinamento no sofrimento. Quando alguém lhe perguntava sobre a existência de espíritos e deuses ou sobre a origem do mundo e vida após a morte, ele se recusava a responder, pois especular sobre esse assunto não resolve o problema do sofrimento, portanto não é relevante.

Desta forma Buda se recusava a discutir coisas não verificáveis e dava atenção aos problemas da mente e em como construímos nosso sofrimento. Por mais incrível que possa parecer, a felicidade está plenamente disponível. Nosso sofrimento é construído dentro da nossa mente. Quando alguém pergunta como construir sua liberdade, a única resposta possível é: “Quem lhe impede? Quem te impede de fazer qualquer coisa”? É com nossa maneira de ver o mundo que construímos nosso sofrimento e nossa prisão.

Construímos nossa ansiedade alimentando expectativas futuras. Construímos nossa angústia pensando em nossa finitude, nossa morte e no fim de todas as coisas. Pensamos logo em seguida em qual o sentido da vida se tudo caminha inevitavelmente para uma dissolução. Ao nos enchermos de angústia e ansiedade perdemos o mar, as montanhas, os pássaros e as flores, perdemos esse imenso privilégio de estarmos aqui. Por fazermos as coisas rápido demais perdemos o contato com a realidade e todo o sesshin é construído para que retomemos esse contato com a realidade do momento presente.

Ao ficarmos silenciosos não agitamos nossa mente com conversas inúteis, não fazemos piadas e nem brincamos com os outros, desta forma não agitamos nossa mente e nem a dos outros. Os rituais são longos e monótonos para que comecemos a prestar atenção aos detalhes. A refeição com oryoki é uma aula de momento presente onde em cada palavra e cada verso, somos chamados a prestar atenção. Com nossa mente temos a capacidade de transformação.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

A simplicidade da iluminação



Iluminação é atingir um ponto tal onde esta capacidade de perceber e sentir está sempre presente, podendo sempre ser chamada. Isso é o “Satori”. Noto que muitos têm dificuldade de explicar a simplicidade disso. As elaboradas teorias filosóficas do budismo são interessantes, foram desenvolvidas durante milhares de anos, mas não proporcionam automaticamente a iluminação. A única coisa que realmente proporciona uma capacidade de libertação do passado e futuro, viver plenamente o momento, é uma forma de  prática. Então surge a pergunta: “Quanto zazen eu tenho que fazer?” Esta não é a questão. Zazen é a “forma” de treinar este descarte de passado e futuro, ficando aqui e agora, mas se conseguir fazer isso em sua atividade diária, você transforma em zazen aquele momento. Comer é zazen, é isto que o “oryoki” pretende ensinar. Você pode voltar à mente do zazen esperando em uma fila, lavando louça, varrendo o chão.

Uma vez estava ao lado de um mestre tibetano, Chagdud Rimpoche, e meu filho então com 7 anos fez a pergunta: “Quanto tempo o senhor medita?” e ele respondeu: “24 horas por dia”. Isso é importante, nós podemos levar a prática para além do zazen. 40 minutos de zazen em um dia e dizer: “Eu já pratiquei hoje”, não é muita coisa, serve apenas para serenar. Você tem que levar a prática mais longe.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Bia Jikihô San em Gotanjo Ji





Jikihô San (Bia Gonzaga), entrou hoje no mosteiro de Gotanjo-ji onde fará treinamento monástico, durante algum tempo não poderemos falar com ela exceto por carta escrita. Fotos de sua chegada abaixo, agradecemos a todos que ajudaram para que ela pudesse lá chegar. Deixou aqui sua filha de 12 anos e seu trabalho. Chudô San (Ápio) foi para outro mosteiro cumprindo a regra de afastamento de todos os relacionamentos durante este tempo. Ele pretende ficar 2 ou 3 anos em Sojiji Soin, teremos novas notícias provavelmente em 3 meses.

Insights


Vamos comentar um pouco sobre as experiências do sesshin. Em geral, durante o zazen não há experiências místicas, não há insights, é raro. Os insights tendem a ocorrer fora do zazen. No zazen você prepara a mente. Muitas pessoas sentam para entrevista e comentam que fizeram um zazen “péssimo”, com uma quantidade incrível de pensamentos, etc. Ora, ao sentar e o fluxo de pensamentos apresentar-se, você pode deixá-los passar, pois uma hora eles cansam. Por isso, quando o pensamento aparecer, você pode dizer: “Você de novo? Eu já pensei isso. Eu vou ouvir o riacho”.  Com isso os pensamentos se dissolvem e, no segundo dia, essa invasão de pensamentos é reduzida, porque estamos cansados e a mente está cansada destas reapresentações.

Existe o método intelectual, que a psicologia e os terapeutas usam, que se baseia na elaboração do problema, com longas discussões das preocupações mentais.  Sem considerar tal método errado ou inútil, mas no Zen o que fazemos é descartar o que passou. Posso até ter vivido minhas lembranças, mas só vejo isso porque tenho e acalento memória. É essa memória que pesa e nos faz carregar o passado. Então, no zazen esvaziamos nossa mente, deixando os pensamentos passarem até que eles desistam.

Você pode fazer um zazen totalmente errado se sentar e rememorar seus pensamentos com prazer. Isso não é zazen, você apenas sentou para pensar. Mesmo que seu zazen tenha sido cheio de perturbações, mas você ficou no momento presente e persistiu, pode sair do zazen e, de repente, ter uma experiência pura. Uma experiência presente e maravilhosa, extremamente simples, algo que você sempre fez, mas apresentou-se magnífica naquele instante. Esta é a experiência iluminada, como um flash de iluminação. Você não está iluminado, mas teve uma experiência iluminada, muito curta, pequena, mas teve.


O desafio portanto, é: como posso treinar para ter essa mente permanentemente por muito mais vezes? Como transformar cada pequeno ato em um ato maravilhoso? Com isso a vida torna-se maravilhosa. Não existe tristeza ou depressão na vida em que você vê o maravilhoso nas pequenas coisas que está fazendo. Essa é a diferença entre a vida normal e a vida desperta. A vida normal é como uma jornada cheia de neblina, com muitas preocupações, carregando coisas do passado, tristezas e sem enxergar a maravilha da vida. A vida iluminada é a mesma vida, igual, porém sem neblina, com uma luz clara, ouvindo e sentindo esta maravilha. Por isso dizemos que não é “nada de especial”, mas ao mesmo tempo é extraordinário, pois cada um que senta sabe como é difícil.

Durante, ou mesmo um ou dois dias após o sesshin ainda podemos ter uma experiência iluminada, mas mesmo assim devemos continuar a praticar. Caso a prática não seja contínua, mesmo uma experiência em sesshin desaparece e vira memória. Podemos até lembrar da experiência, mas não mais a temos naquele instante. Essa é a diferença de uma experiência iluminada, e iluminação.


quinta-feira, 3 de abril de 2014

Observações sobre linhagens femininas no Theravada

Prof. Sasaki fez algumas observações sobre a postagem anterior, pela sua pertinência as apresento, ressalta-se que são feitas a partir da ótica Theravada a qual pertence o professor.

1) Para o Prof. só pode haver ordenação de mulheres, seguindo o Vinaya, se houver uma ordem de mulheres existente e ininterrupta até Buda. Informa que fora do zen japonês existe isto no Vietnam, China e Coréia.
2) No Theravada e no budismo tibetano, as linhagens femininas pereceram. Houve massacre islâmico mas ele é responsável por um evento indiano, o qual não atingiu outras áreas. Não é o único responsável pela interrupção de linhagens. Dentro do Theravada moderno há grupos querendo ordenar monjas e outros grupos que não aceitam isto.
3) Evidentemente o Theravada passado já aceitou monjas, o problema atual se prende a questão de linhagem explicitada no item 1.
4) O fato do zen não apresentar esta restrição a ordenação de monjas não implica uma superioridade de tolerância e sim um entendimento diverso de linhagem.
5) Para o Prof.  : "Só há monjas no Theravada se aceitarmos os argumentos pro ordenação modernos"

Linhagens femininas


Pergunta – Quando fazemos cerimônias, recitamos os nomes dos patriarcas. Por que não temos nenhuma matriarca, apesar de no budismo não haver a distinção dos gêneros?

 Monge Genshô – Não é verdade. No tempo de Buda tivemos Prajnapati, que era sua tia, e que foi uma grande mestra. Ela juntou-se à Buda com um grupo de amigas dando origem a uma grande linhagem feminina. Acontece que por volta do século XIII a Índia sofreu uma invasão islâmica que destruiu praticamente a base budista existente na época, as monjas foram mortas, este foi um dos eventos que marcou uma decadência do budismo indiano, em outras regiões linhagens femininas permaneceram, mas ao menos no budismo Theravada, no japonês e tibetano as linhas femininas se extinguiram com o tempo.

Também a universidade de Nalanda foi destruída. Muitos monges também foram assassinados, mas, como por uma questão cultural, sempre houve mais monges que monjas, elas foram extintas, acabando assim com a base contínua de transmissão de monjas. A partir de então as monjas passaram a ser ordenadas nas linhagens masculinas ao menos no zen. Não temos nenhuma monja cuja linhagem nos leve a Prajnapati no zen japonês. Por isso falei que não é verdade, já tivemos no passado uma linhagem feminina.

Linhagens Theravada do sul da Ásia, não consideram as monjas como plenamente ordenadas. Eles as consideram inferiores por não terem linhagens femininas e por não considerar que elas possam ser ordenadas em linhagens masculinas. Há controvérsias e tentativas de recriar isto no Theravada mas não com unanimidade.


Pergunta – Mas por que Bodhidharma não transmitiu para uma mulher?

Monge Genshô – Ele só passou a transmissão para uma única pessoa, que por acaso era homem, “Taiso Eka”. A sociedade dessa época era muito machista, de forma que era natural acontecer coisas do tipo, uma mulher era ordenada monja, mas seu pai ia até o mosteiro dizendo que seu filho homem havia morrido e ele necessitava que sua filha lhe desse um neto para continuar o nome da família. O abade do mosteiro mandava que a monja saísse do mosteiro, casasse e desse um neto para seu pai.  No Japão de hoje existem apenas dois monastérios exclusivamente femininos.

Pergunta – A linhagem não é uma exclusividade do Zen?

Monge Genshô – Não, varias escolas possuem linhagens, veja que Nagarjuna, que aparece na nossa linhagem, também aparece na linhagem de outras nove escolas, ou seja, mais nove escolas o reivindicam como patriarca do passado.

Pergunta – Como reagir com as pessoas que nos perguntam algo sobre o budismo? Eu pratico há pouco tempo, mas as pessoas notam algumas mudanças e fazem perguntas e pelo que o senhor fala devemos ter cuidado com quando e como falar do Dharma.

Monge Genshô – Essa é uma pergunta pessoal, no sentido que é você quem deve examinar a circunstância, mas a regra é: não fale do Dharma onde não há respeito. Não fale apenas para satisfazer a curiosidade de uma pessoa, espere que ela esteja realmente interessada, que pergunte mais de uma vez, pelo menos três vezes. Não fazemos proselitismo e não estamos interessados em convencer ninguém. As pessoas devem realmente querer, devem procuram com afinco.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Tecnologia


Pergunta – Mas e se a pessoa não quiser prestar as reverências ou acender velas?

Monge Genshô – Se você acender velas para uma estátua não estará fazendo mal algum e se não quiser acender, não acenda. Mas a atitude budista mais correta é a de fazer o que as pessoas estão fazendo, então se você está junto de pessoas que esperam que você faça uma reverência e acenda velas, é isso que deve fazer, você não deve chocar, contrariar ou criar conflitos. Devemos procurar a harmonia.

Pergunta – A sociedade tecnológica está tomando conta do mundo hoje. O budismo vê esse avanço tecnológico?

Monge Genshô – A tecnologia é algo maravilhoso, mas é aética por natureza, por exemplo, uma faca pode tanto ser usada para cortar pão como para matar uma pessoa. A tecnologia é um instrumento e como tal pode ser usado para o bem e para o mal. O avanço tecnológico liberou o homem, veja bem, há duzentos anos 90% das pessoas estavam no campo produzindo comida. Quando eu nasci a sessenta anos atrás, 30% das pessoas já estavam nas grandes cidades e hoje esse quadro inverteu-se totalmente, temos 90% das pessoas nas cidades. Nos EUA menos de 3% das pessoas trabalha no campo produzindo alimentos para todo o país e ainda para exportação. A indústria ocupa por volta de 13% das pessoas, a grande maioria trabalha em serviços, é por isso que olhando para as mãos das pessoas nessa sala percebemos que ninguém tem calos ou sujeira embaixo das unhas.

Hoje em dia não se morre aos trinta anos de alguma doença desconhecida. A tecnologia melhorou nossa qualidade de vida. O bom seria que esse tempo a mais proporcionado pela tecnologia fosse ocupado com mais leituras, mais dedicação para olharmos para dentro de nós, mais estudos e para ter um nível de informação melhor. Antes da invenção da imprensa quem tinha oportunidade de ler livros? Santo Agostinho fez um comentário sobre Santo Ambrósio: “O Bispo Ambrósio é o homem mais culto do nosso tempo, imaginem que ele é capaz de ler sem mover os lábios”. Hoje, meu filho de sete anos é capaz de ler sem mover os lábios. Você pode ligar a TV para ver um documentário de qualidade, assistir uma ópera ou pode assistir um programa de baixa qualidade moral, é você quem escolhe. Toda a tecnologia é assim.

Respondendo sua pergunta, o budismo não faz julgamentos sobre tecnologia. Ainda temos tecnologia de má qualidade, por exemplo, produzimos energia queimando carvão e poluindo a atmosfera. Temos muitos estudos na área de produção de energia, mas tudo muito no início. Nossa produção de energia ainda é incipiente, não poderíamos dizer que a partir de amanhã não queimaríamos combustíveis fósseis, isso pararia o país.

terça-feira, 1 de abril de 2014

A devoção


Algumas pessoas sentem falta de devoção. A devoção e seus aspectos místicos sempre foram importantes na história da humanidade. A porta da devoção, já nos tempos de Buda, era destacada como uma das práticas de yoga, a “Bhakti Yoga”. Ocorre que o budismo fez uma “terra arrasada” das crenças e isto fez com que muitas pessoas se sentissem desamparadas, o que ocorre ainda em nossos dias. Algumas pessoas sentem-se chocadas quando chegam ao Zen e percebem que não existe nada onde se agarrar ou alguém a quem apelar.

À medida que o budismo se expandia, tinha que lidar com a cultura que estava disponível. Na Índia, os sutras iniciais falam dos “deuses do hinduísmo”. Os autores escreveram que os deuses solicitaram a Buda que ele ensinasse o Dharma, até mesmo aos próprios deuses. Quando o budismo chega à China encontra aspectos tonfucionistas e taoístas.  O budismo, então, incorpora muitos símbolos e palavras confucionistas e taoístas, pois essa era a maneira de expressar os pensamentos.

Do confucionismo o budismo adota o conceito de “devoção filial” e reverência aos antepassados. Os primeiros chineses, não se identificando com o vazio do pensamento budista sentem-se chocados e, em razão disso, são escritos Sutras Mahayanas que enfatizam a devoção filial. Era uma forma do budismo dizer que não combatia a cultura chinesa de devoção, mas sim a incorporava.

Os deuses da China e do Tibete também foram incorporados ao panteão budista popular. Ocorreu o mesmo quando o budismo chegou ao Japão e encontrou os diversos deuses do Xintoísmo. Como forma de incorporar esses deuses, o budismo os transforma em protetores. Ainda hoje encontramos nas casas japonesas deuses xintoístas como divindades budistas protetores do lar. Aqui mesmo em nossa sangha há logo na entrada uma estátua de “Jizo Bosatsu”, representado com um bastão em uma das mãos e na outra uma criança. Jizo Bosatsu é o protetor das crianças e dos viajantes. É originário dos tempos de Buda? Não, é uma divindade local  incorporada ao Zen e transformada em Bodhisattva.

Nem Buda pode ser considerado um ser de devoção, pois foi um homem como nós que mostrou que era possível se iluminar. Como havia nas pessoas a necessidade de devoção, foram criados seres como o “Bodhisattva da Grande Prática”, Fugen, o “Bodhisattva da Grande Sabedoria”, Manjusri ou ainda Kannon, o “Bodhisattva da Compaixão”. Esses Bodhisattvas são, então, expressões das necessidades devocionais. Se você perguntar para um grande mestre Zen se todos os Bodhisattvas existem de fato, a resposta dele será, “Se você acredita neles, eles existem”.