quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Me dê suas próprias palavras


Pergunta: Essas descrições, que há em alguns sutras, elas no Zen são ou devem ser completamente ignoradas ou elas são estudadas como padrões mentais?

Monge Genshô: Os sutras foram escritos por quem?

Aluno: Pelos homens.

Monge Genshô: Por homens. O que os homens fazem?  Os autores dos sutras pensaram: “Ah, isso aqui vai influenciar as pessoas! Então eu vou dizer que Buda surgiu num céu de ouro, etc e tal, em edifícios cravejados de pedras preciosas” etc... Aí escreveram essas coisas que eles acharam que seriam influentes. É natural, eram homens, embora os sutras possam ser profundos, difíceis, muito elaborados. Você pediu para ler o Lankavatara Sutra, né. Não achou difícil?

Aluno: Muito.

Monge Genshô: Então, são enlouquecidamente difíceis, como problemas filosóficos. O Lankavatara Sutra, o Surangama Sutra, são assim. Sequências de mais de uma centena de perguntas com respostas - todas respostas profundas. Então, realmente quem escreveu era um verdadeiro conhecedor do Dharma. São textos muito interessantes mas, como eu disse ontem, “não me dê as palavras dos sutras, me dê suas próprias palavras”. Não adianta ir lá na entrevista com o monge,  chegar e perguntar: “como é que vai seu zazen?” e você citar um sutra. Isso não tem significado nenhum, isso seria completamente tolo. Então, nós temos nos sutras mapas, guias interessantes, mas também coisas que não servem mais para o mundo de hoje. Como servem os conselhos de Buda sobre subordinação das mulheres, deveres dos homens, que foram escritos 2600 anos atrás? Como servem para hoje? Parcialmente... Num mundo em que força física não é mais importante, por exemplo?  Naquele tempo, um homem era diferente de uma mulher. Um homem podia fazer serviços que uma mulher não podia fazer. Qual é o serviço que uma mulher, hoje, não pode fazer? Que um homem não pode fazer? Num mundo de máquinas, instrumentos, computadores etc? Mudou tanto.

 É como eu dei um exemplo lá em Goiânia. Em antigos textos bíblicos, está escrito: “os homens não podem cortar o cabelo das têmporas.” Aí vocês já viram aquelas seitas hassídicas, que deixam cachinhos caindo? É porque eles não podem cortar o cabelo das têmporas. Porque está escrito lá no livro. Podia ter sentido lá naquela época, que eu não sei qual é, mas hoje, que sentido tem? Então, nós temos que ter essa clareza. Sempre surgem os ortodoxos, que querem seguir os textos ao pé da letra. Estávamos falando ainda há pouco. Mas, a que isso leva?

Em Israel há elevadores que aos sábados são desligados, de modo que você entra no elevador e ele para em todos os andares, porque um judeu de uma dessas seitas ortodoxas não pode apertar um botão, pois se ele apertar um botão, está fazendo a máquina trabalhar para ele. Então, se criou isso. No domingo o mecanismo é desligado e para de andar em andar. Qual era o sentido antigo da guarda do sábado? O sábado era dia de descanso. Então, você não trabalhará, seu jumento não trabalhará, sua mulher não vai trabalhar. Ninguém vai trabalhar no sábado. Vamos dedicar esse dia, um dia de descanso. É um dia de oração. Era esse o sentido. E agora virou essa maluquice para elevadores. Então nós temos que tomar cuidado com a ortodoxia.

Pergunta: Com relação aos sutras, Monge, existem sutras que permitem, que trazem insights para as pessoas? Por exemplo, o Sutra do Diamante?

Monge Genshô: Com certeza. O Sutra do Diamante é o Vajracchedika Sutra. É um sutra que corta todas as ilusões. Por isso se chama Sutra do Diamante. Ele é como se fosse um controle de qualidade dos paramitas. Ele pega, por exemplo, a paramita da paciência e analisa. Claro, ele é muito útil, deve ser lido, mas você tem que ler pensando: “esse texto foi escrito por um Mestre e eu vou aproveitar o que me for útil nesse texto”. Não o tome como baixado do céu, como um texto sagrado, que nós temos que seguir ao pé da letra.
Vejam o que acontece hoje no Oriente Médio, onde existe uma religião com um texto que foi ditado pelo próprio Deus. Então, se foi ditado pelo próprio Deus, tem que ser seguido. Assim, tem os grupos que querem que as regras sejam seguidas como eram naquela época.

Esses dias li a declaração de um religioso de que uma mulher que for estuprada, tem que ser enforcada. Mas, por que ela tem que ser enforcada, se ela foi estuprada? Porque está no texto. Ela não foi só do seu marido, ela foi de um outro homem. Mas foi um estuprador! Não interessa. Ela não serve mais. Enforque. Esse é o grande perigo de olhar o texto dessa forma. O pior é que essa declaração foi feita por um ministro de governo de um país do oriente médio. Imagine a força institucional que tem uma crença desse tipo. E não é impossível que surjam grupos extremistas budistas, etc, que comecem a pensar “o outro é diferente” também.  Nós temos que ser radicalmente contra esse tipo de pensamento. Nós temos que preservar nossa liberdade mental.

E, para encerrar, há uma história. Eu gosto muito de um mestre a quem um aluno perguntou: “Você foi aluno do Mestre fulano de tal?” Ele disse: “Sim, fui.” “Ah, que maravilha. Aluno do grande mestre fulano de tal. E o senhor aceita tudo o que seu mestre lhe dizia?” “Não, aceito metade e rejeito metade.” E o aluno continua: “Mas como o senhor rejeita metade do que o seu mestre dizia?” E ele responde: “Se eu aceitasse tudo o que ele me dizia, não seria digno do meu mestre, porque o meu mestre me ensinou a pensar, me ensinou a manter minha liberdade mental, meu senso crítico. Eu posso até estar errado, mas não preciso aceitar tudo o que ele disse”.

Então, vocês não precisam aceitar tudo o que eu digo. Simples assim.
(Final da terceira palestra no sesshin de inverno, decupada da gravação por Rachel San)