terça-feira, 30 de setembro de 2014

Além dos apegos está a liberdade


1) O senhor falou em células, a diferença entre uma célula e outra se dá somente no nível energético?

Saikawa Roshi – Mesmo as pedras têm diferença de energia. Tudo é diferente, nada existe da mesma forma.

2) Até onde vai nosso esforço, não só na busca da iluminação, mas mesmo para se manter sentado, onde é o limite?

Roshi – Sim, limites existem. Nós estamos navegando em causa e efeito como a correnteza de um rio, em momentos ele é rápido em outros é lento. Um rio forte pode destruir muitas coisas pela frente. Naturalmente se existem diferentes níveis de energia, existem diferentes níveis de limites, é da natureza da vida.

3) O conhecimento tem vários estágios. Primeiro não sabemos que não sabemos. Depois, sabemos que não sabemos. Quando a gente sabe muito, até esquece, pois faz tudo automaticamente. De onde vêm esses insights súbitos que temos? Por exemplo, saber ou conhecer algo que nunca havíamos visto antes?

Roshi – Isso também vem da correnteza de causa e efeito. Quando se reunirem as condições para o insight, ele acontecerá.

4) Voltando ao exemplo do café. O café que trouxe sensações boas por estar relacionado com coisas boas, ou o contrário? Como isso repercute no futuro? Por exemplo, em vinte anos se eu sentir o cheiro do café isso me trará boas ou más recordações? Como lidar com situações tão distintas para evitar o sofrimento?

Roshi – Isso é sobre o sofrimento ou sobre o café? Você sabe a resposta não é? Apenas observe, sem comparações, sem considerações, sem julgamentos. Memórias trazem muitos apegos, muitas energias associadas às coisas trazidas pela memória. Se você livrar-se dos apegos obtém a liberdade.

** Comentário do tradutor, Monge Genshô – existe uma historinha Zen, uma anedota, o aluno pergunta para o mestre: “Mestre, como posso ser livre?”, e o mestre responde: “Quem te prendeu”?

Sob ponto de vista relativo, minha opinião, minhas idéias e meu corpo existem. O senso de eu, meu e minha do ponto de vista de Buda são projeções do eu, é o eu quem agrega essas coisas. Todas essas coisas são criadas condicionalmente. Meu carro, minha casa, minha esposa, minhas filhas, todas essas coisas existem cem por cento no mundo relativo. Mas nada disso você pode segurar porque do outro lado é como se fosse um espelho, as coisas aparecem e somem e o espelho não diz nada, nada julga. Nós usamos simbolicamente a palavra espelho, mas o espelho também não existe independentemente, também é uma construção, tudo isso realmente existe, mas se você cortar a raiz do conceito, tudo bem. Qual a raiz dos problemas, das coisas ou sentimentos? Se você encontra a raiz e corta, passa a não mais se importar se perder as coisas, perder um amor, ou até mesmo um sentimento de sofrimento não o agride mais. A raiz é o apego, o meu, o minha.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Chegando a outra margem


 (continuação)
Saikawa Roshi: - O ensinamento de Buda é sobre a realidade além de nossas atividades mentais. A filosofia ocidental funciona somente com atividade mental e dualismo, branco e preto, ganhar e perder, isso é muito limitado. Com palavras e linguagens só podemos pensar de uma única forma. Buda se comunicava com palavras ininteligíveis para os seres normais, ensinava sobre grandes coisas, não o que está visível para nós, em frente aos nossos olhos, mas coisas impensáveis. No lugar de algo linear com começo e fim, temos um círculo onde em cada ponto é começo e fim. De um lado da moeda temos esses ensinamentos impensáveis, do outro temos a dualidade da vida diária. Se vocês começarem a pensar com um lado e o porquê de nascerem assim ou assado, não encontrarão a resposta, a realidade é que as coisas são como são. A resposta está aqui.

Os ensinamentos de Buda são sobre o outro lado da moeda, um ensinamento imensamente amplo. Em “MUKU SHU METSU DO” ele nega o fim das coisas, sem ignorância, sem fim da ignorância, sem velhice e morte, sem fim da velhice e morte, ele nega também as Quatro Nobres Verdades. Do outro lado da moeda essas coisas que são próprias do ensinamento budista também são negadas. Se você praticar poderá acabar com o sofrimento, pois ele tem uma causa e se existe uma causa ela pode ser eliminada, então mesmo isso ele nega ao dizer que não há sofrimento e nem fim do sofrimento. Dessa forma os Bodhisattvas seguindo a prática do Prajna Paramita, ficando com suas mentes livres ficam sem medo, sem obstáculos, além das delusões e podem atingir o nirvana, obtendo a sabedoria completa. Prajna Paramita é o grande mantra.

A parte final “GYA TEI GYA TEI HARA GYA TEI HARA SOWA GYA TEI” não aparece em muitas traduções, mas uma tradução é “eu fiz, eu fiz, eu atingi a outra margem, até o fim eu alcancei, viva”. Outra tradução é “juntos, juntos, vamos juntos para o mundo do nirvana”. Nessa tradução o título está no fim do Sutra e não no começo como é de costume. Como essa tradução é de um texto indiano, o título se repete no fim que é como é tradição nos textos Indus. (Fim)(continua com perguntas e respostas do mestre)

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Eu sou vida, vida não nasce, só continua


 (continuação)
Saikawa Roshi: -  A parte do Sutra “Fu-sho Fu-metsu, Fu-ku Fu-jo, Fu-zo Fu-gen”, significa que nesse mundo do Dharma nada surge ou desaparece, nada é puro ou impuro, nada cresce ou diminui, como eu falei antes, o mundo é como é e vai além de nossas estimativas ou julgamentos. Todo o universo é assim, não surge nem desaparece, só se transforma, a energia fundamental é a mesma.

Na próxima parte do Sutra aparece algumas vezes a expressão “MU”, os cinco skandas são um, ou seja, não há sensação, percepção, conceituação etc., não existem também os sentidos, tato, visão, audição, paladar, olfato e também a mente, nem corpo, nem forma, nem conhecimento, nem cor, cheiro ou sabor. “MUMYO” é então o mundo da delusão, logo, na parte “MUMUMYO”, ele nega a existência da delusão. Na minha interpretação, esse “mu” é como se estivéssemos usando um espelho, tudo que aparece, mesmo esse som (bate na mesa) é refletido, sem preferência ou julgamento. Da mesma forma, não importa se você gosta ou não de todas essas sensações, elas surgem e desaparecem. Esse som (bate na mesa) agora existe, mas no segundo seguinte não existe mais, para onde foi? A atividade mental também é assim. Aquilo que pensamos ser real e que agarramos desaparece em instantes. Ao mesmo tempo que ele diz que não existe delusão, a delusão não tem fim, porque a existência dos seres humanos depende da delusão. Não há delusão mas não há como ficar além da delusão, porque nascemos como seres humanos e os seres humanos precisam de palavras e linguagens como uma ferramenta para pensar e resolver problemas.

A realidade é que não nascemos, mas usamos expressões como “eu nasci em tal dia e tal mês de determinado ano”. Mas eu sou vida e vida não nasce, vida só continua, então eu sou uma continuação de meus pais que são uma continuação de seus pais. Eu não nasci. Uma única molécula não possui vida, mas combinadas podem formar uma célula, porém não existe uma linha clara separando vida de não vida. Do ponto de vista de uma mente ampla, todo o universo tem vida, porque não podemos dividir, não há fronteiras, logo, um nada existir é o mesmo que tudo existir. Forma é vazio e vazio é forma, é o mesmo que dizer branco é preto e preto é branco, nada é tudo e tudo é nada.
(continua)

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Tradução para o inglês do livro "O Pico da Montanha é onde estão os meus pés"

Traduzido por L. James Gross 

“Shari, você entendeu? Forma é vazio, vazio é forma”


 (continuação)
Saikawa Roshi: -  Neste Sutra Shakyamuni Buda está falando para seu discípulo Shariputra sobre o Bodhisattva da Compaixão, Kanon. Em algumas traduções Kanon aparece como “Kanjizai Bosatsu” ou “Kanzeon Bosatsu”. “Kan” significa observação, “Kanzeon” significa observação dos lamentos do mundo.

Os lamentos do mundo podem ser as orações, os pedidos, as vozes do mundo. Em outra tradução, “Kanjizai, Jizai” é livre, então, Kanjizai Bosatsu é o Bodhisattva que observa a libertação desse mundo.

O Bodhisattva Kanon diz que praticando profundamente, viu o vazio dos cinco agregados, essas cinco condições ou agregados dizem respeito ao corpo e mente. Porque estamos falando sobre corpo e mente? Porque da cabeça aos pés nós criamos sofrimento. Muitos dos Sutras têm Shakyamuni Buda falando sobre corpo e mente. Seiscentos volumes do Praja Paramita também falam sobre corpo e mente. Esses cinco agregados dividem o corpo e a mente em quatro e em cinco maneiras de analisar a mente - sensação, conceituação, discriminação, consciência e formações mentais. Numa outra forma de analisar, não há olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente, nesse caso o corpo é dividido em cinco partes ou sentidos e a mente, portanto seis sentidos, diferente da primeira interpretação que cita o vazio dos cinco agregados.

O vazio é como se transplantássemos nossos órgãos, qualquer pessoa pode receber um órgão nosso se houver compatibilidade. Na vida diária dizemos meu corpo, meu coração, meu sangue, mas se fizermos um transplante de órgãos, estes deixarão de ser nossos. As expressões meu sangue, meu corpo e minha pele são condicionadas pelo uso, não são expressões verdadeiras. Da cabeça aos pés tudo é sem fronteiras. As pessoas não conseguem entender que tudo que elas chamam de “meu” é recebido dos outros, nada é realmente seu, mas, coisas como “minha preferência”, “gosto disso e não daquilo”, também é condicionada, por exemplo, quando experimentei café pela primeira vez eu estava amando, o gosto era delicioso, então hoje eu adoro café. Mas se eu tivesse experimentado café pela primeira vez em uma situação em que tivesse perdido um amor, com certeza o gosto do café teria sido horrível, teria sido um gosto amargo como a vida.

A preferência é uma coisa muito condicionada. Não fui eu quem decidiu, as situações ao meu redor condicionaram minha impressão. Não somente café ou chá, mas muitos pensamentos, idéias e tendências de pensamentos vêm de fora. Não saíram de mim, eu recebi através da televisão, jornais, experiências e conversas com outras pessoas. Mas o que fazemos é dizer “minha opinião”, “minha idéia”, mas isso não é verdade e muda muito. Se você dá sua opinião ou idéia para os outros hoje, amanhã elas podem mudar. Nossa mente e nosso corpo também são sem fronteiras.
Observando essas coisas Kanzeon Bodhisattva livrou-se de todas as dores e sofrimento. E Buda diz para Shariputra - “Shari, você entendeu? Forma é vazio, vazio é forma”. Assim também todas as coisas o são, concepção, discriminação, conceituação, percepção, todas são vazias.

**Comentário do tradutor, Monge Genshô – O que o Roshi está querendo explicar é que vazio significa que nenhuma destas coisas, concepção, discriminação etc., possui um “eu” inerente, nenhuma coisa é sua ou de alguém, o coração também não tem um “eu”, pode passar de corpo para corpo e funcionar em outros corpos, por isso esse coração é vazio, vazio de que? Vazio de um “eu” inerente.
(continua)

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O Sutra do Coração da Sabedoria


Pirogravura realizada por Cassio Dias, Saikawa Roshi à esquerda.


Saikawa Roshi: Durante o zazen eu falei um pouco sobre o Sutra do Coração da Sabedoria. Sei que alguns de vocês estão fazendo sesshin (retiro) pela primeira vez e outros são bem mais iniciantes no Zen, por isso eu gostaria de falar sobre esse texto básico. No título “Maka Hannya Haramita Shingyo”, “Maka” significa grande, mas não como oposição a pequeno.

Quando falamos em “grande” no Budismo, estamos nos referindo ao infinito, sem fronteiras, sem limites. “Hannya” é o mesmo que “Prajna” que significa sabedoria, mas não a sabedoria da vida diária. Na vida diária uma pessoa sábia é uma pessoa que parece ter bastante conhecimento e é muito inteligente. No budismo sabedoria é saber como somos no momento presente, você abrir seus olhos e perceber-se um com todo o universo. Isso é sabedoria para o budismo.

Os ouvidos podem ser um com o som, o nariz pode ser um com o aroma, a língua pode ser um com o sabor, não importa se você gosta ou não, seja um. O corpo pode ser uno com o suave, duro, quente ou frio e a atividade da mente também pode ser uma com tudo que aparece, esse tipo de percepção é chamado de sabedoria, é “Prajna”. 

“Paramita” significa ir para o outro lado, a outra margem. Historicamente esse lado e o outro lado são uma representação simbólica. O outro lado é o nirvana. O caractere para “Shingyo” é mente, mas pode ser lido de outras maneiras e, portanto ter outros significados como, por exemplo, essência.

O Sutra “Hannya Shingyo” é normalmente traduzido como o Sutra do Coração, mas na verdade eu traduzo como o “Sutra da Essência da Coleção dos Sutras do Prajna Paramita”. O Sutra Prajna Paramita é uma coleção de seiscentos volumes. Aquele Sutra que eu recitei na purificação do Dojo é o quinquagésimo septuagésimo oitavo (578°) Sutra. O Sutra do Coração fala sobre a essência de passar para o outro lado.

**Colocação do tradutor, Monge Genshô - “O Roshi (venerável mestre) está explicando que os ideogramas têm muito mais significados em cada símbolo do que lemos na tradução, então, quando lemos em português o “kanji Shin”, temos que entender que por trás da tradução simples que fazemos, no caso mente, existem outras possíveis como sentimento, coração, essência etc., logo, o sutra quando lido no seu original com ideogramas, tem mais interpretações do que em um idioma fonético.” (continua)

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Sabedoria é melhor que crença.


Pergunta – Quando estamos sentados meditando e acontece, como o senhor falou, um sonho, isso seria um estado de transe?

Monge Genshô – Não, é dormir mesmo.

Pergunta – Mas pode?


Monge Genshô – Não, não é para dormir quando se medita. Mas naquela ocasião estávamos vinte e quatro horas sem dormir, sentando em zazen e levantando para meditação andando e isto ocorre naturalmente.

Pergunta – O Budismo acredita em espíritos?

Monge Genshô – O Zen Budismo não é a religião do acreditar.

Pergunta – Mas acredita em vidas passadas.

Monge Genshô – Mas não do mesmo eu. O Zen Budismo não é a religião do acreditar. É a religião do despertar das ilusões. Você não é obrigado a acreditar em nada, nem no que eu digo. Você pode, através do treinamento da meditação, testar se o que eu digo serve ou não para você. Através deste treinamento você pode adquirir sabedoria e isso é muito melhor que qualquer tipo de fé.  O que desejamos no Zen é saber.

Pergunta – Minha pergunta é em razão do carma...

Monge Genshô – Carma é ação e consequência, tudo que você faz tem uma consequência. Isso afeta não somente essa como quaisquer vidas que venham depois. Essas vidas que vêm depois não serão você, pois não existem almas ou espíritos. Muito menos “eus” permanentes, aliás, nada existe de permanente.  ( Final das perguntas em palestra em 2013, Florianópolis, decupada por Chudô San)

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Sonhos


Pergunta – Segundo Cassirer, o homem é um ser simbólico e Sartre diz que somos livres. O Zen de certa forma fala a mesma coisa quando, por exemplo, o senhor fala do carma e de quanto somos capazes de mudá-lo. O senhor poderia falar um pouco sobre essa nossa liberdade de poder fazer diferente?

Monge Genshô – Somos aparentemente livres. Temos a capacidade de mudar nosso carma, mas na prática o que acontece é que somos arrastados por ele e não mudamos facilmente. A maior parte do tempo somos arrastados pela corrente. É claro que uma pequena decisão tomada hoje, dentro de um fluxo de tempo de dez anos pode gerar uma mudança muito significativa. Mas essa é uma liberdade aparente. Veja o exemplo de Jikiho San, há cinco anos quando ela começou a frequentar a sangha ainda se chamava Bia a chef e, tenho certeza, não esperava que sua vida fosse tomar o rumo que tomou. De pequenas em pequenas decisões ela hoje está de malas prontas para ir treinar em um mosteiro Zen no Japão como monja noviça. Nós temos a capacidade de mudar nosso carma, dá trabalho, mas é possível.

Pergunta – O senhor falou dos sonhos como uma ferramenta, poderia falar sobre os sonhos lúcidos?

Monge Genshô – Com o treinamento da meditação você se tornará cada vez mais capaz de influir nos seus sonhos e até mudá-los. O próprio conteúdo dos sonhos vai mudando conforme sua prática fica mais constante. Eu tenho muitos sonhos Dhármicos. Estou tão envolvido com isso que sonho que estou falando sobre o Dharma. Estou tão envolvido com o Dharma que é com isso que alimento minha mente e desta forma meus sonhos giram muito em torno disso.

Há alguns anos quando eu viajava muito de avião e era comum ter sonhos que o avião estava caindo e esse era um momento de grande angústia. Em uma ocasião estava em Congonhas tinha uma passagem  da TAM, para o vôo 1792, lembro até hoje, um cliente me ligou pedindo que eu fosse vê-lo em Suzano. Como ele disse que era importante, fui até Suzano. Quando cheguei lá esse cliente estava na calçada do Diário de Suzano e me disse: “Soube o que aconteceu? O avião da TAM caiu, morreram todos”. Guardei aquela passagem muito tempo como uma lembrança. Por isso eu tinha sonhos com desastres de aviões, mas um dia em um sonho desses eu estendi a mão para um amigo e sorri, me veio então uma sensação de tranquila felicidade e a partir deste dia meus sonhos mudaram. Os sonhos podem ser um bom instrumento para você testar a qualidade de sua prática. Se você em um sonho, em vez de brigar com alguém, você o perdoa, isso é maravilhoso, pois você mudou a raiz do seu inconsciente. Acordado você poderia pensar que está mentindo para si mesmo mas se acontece no sonho, serve para alertá-lo que não é falso, realmente a prática esta funcionando.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

SIGNOS, SÍMBOLOS, SONHOS E ARQUÉTIPOS



(Palestra de Monge Genshô decupada da gravação por Chudô San, ministrada na Sangha de Florianópolis em 2013)

Signos nós vemos a toda hora. Quando vemos na porta de um toalete uma figura de um homem ou uma mulher, isso é um signo e representa menos do que mostra. O que para nós importa são os símbolos. Quando vamos ao altar e vemos uma estátua de Buda, uma vela, um incenso ou uma flor, estes são símbolos e representam muito mais do que estão mostrando, ou seja, têm uma quantidade enorme de significados e muitos deles incompreensíveis para nossa mente racional. Eles falam ao nosso inconsciente. Uma antiga praticante me escreveu dizendo o quanto se sentia desconfortável com as exteriorizações da prática. É comum escutarmos pessoas dizendo que não gostam de rituais.

Eu mesmo já tive esse tipo de pensamento por um período bem longo até aprender que os símbolos não nos falam somente sobre o que eles representam. Uma estátua de Buda não é tão somente um pedaço de gesso ou madeira em forma de um homem sentado. Aquela figura ali representada significa que alguém conseguiu despertar e que você, assim como ele, pode despertar. Representa mais que um homem, representa todo o Dharma, todos os Budas, todos que se esforçaram e que através do caminho do meio também despertaram.

Uma vela é mais que algo feito de cera ou parafina usado para iluminar, ela representa luz e sabedoria. Significa ver com nitidez, ter clareza e representa os olhos de Buda. Quando você observa sua sombra, pode ter noção de quão intensa é a luz atrás de você pela nitidez de sua sombra.

As flores não servem apenas para enfeitar o altar, elas estão lá como símbolo da impermanência e da evanescência, de tudo que hoje é belo e amanhã evanesce, de que tudo o que é jovem, murcha, cai e finalmente morre. Os símbolos são muito mais do que aparentam. Nós devemos fazer reverências mesmo para símbolos de outras escolas ou tradições religiosas. Eu falei que símbolos falam ao nosso inconsciente, e a linguagem de nosso inconsciente é simbólica, por isso sonhamos muitas vezes com símbolos.

As mesmas pessoas que dizem não gostar de rituais, se sentem ofendidas quando não lhes damos bom dia ou não apertamos sua mão quando estendida em cumprimento. Essas pessoas não entendem o significado do gesto. Não entendem que estender a mão em cumprimento significa não estar armado sendo, portanto, um gesto de paz, um símbolo que carrega dentro dele uma carga de comunicação que é arquetípica e não necessita de explicações, mas mesmo que haja qualquer tipo de explicação, esta também não corresponderá ao que verdadeiramente o símbolo representa, isso precisa ser sentido.

Os homens herdam de seus antepassados, múltiplos órgãos. Nós achamos perfeitamente natural que nossos corpos ajam de determinada maneira e nunca questionamos sua herança genética, a herança de milhões de anos que vem junto com nossos órgãos. Porque pensamos que nossas mentes são novas e não trazem traços de antepassados? Nossas mentes não são novas e por isso as pessoas têm sonhos parecidos. Quantos de vocês já sonharam que estão voando, ou então que estão nus numa reunião social, onde ninguém além de você parece notar? São sonhos comuns a muitas pessoas, não importa a cultura que ela viva. Isso significa que carregamos dentro de nós, em nossas consciências, uma herança do passado, elas também não são novas, assim como nossos corpos.

O DNA de nossas células é muito antigo. Há alguns anos eu estava fazendo um zazen de vinte e quatro horas, que funciona da seguinte maneira; você fica sentado até não aguentar mais, levanta faz um pouco de kinhin e volta a sentar. À noite o cansaço é tanto que quinze minutos sentado é o suficiente para adormecer e em razão disso você tem que levantar. O cansaço é de tal forma grande que num piscar de olhos você está sonhando. Isso é muito interessante, pois na prática da meditação descobrimos que é possível acessar o inconsciente. Podemos acessá-lo de maneira tão significativa que até podemos fazer perguntas. Nesse zazen de vinte e quatro horas, no exato momento em que adormeci, perguntei: “Quem sou eu”? Imediatamente apareceu a imagem de um casaco que escorregava lentamente pelos galhos de uma árvore. Ele parecia ter alguém dentro dele, porém nada aparecia nas mangas ou gola. Estava vazio. Eu abri os olhos e entendi perfeitamente o sonho e se vocês pensarem a respeito, poderão entender também, pois a resposta serve para todos.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Controle sempre vai falhar um dia


5) E o controle,  como não ter controle, como não ter o desejo de controlar as situações na vida, tanto profissional quanto emocional? Lembro de ouvir que a base do samsara é o controle, mas então como sentar e tentar ter o controle de nossa mente?

Monge Genshô – Bom, na verdade é um erro sentar e tentar controlar a mente, o que você deveria fazer é apenas sentar sem qualquer objetivo. O controle sempre falha, quer um exemplo? Quando você diz que não vai mais ficar com raiva, logo em seguida surge uma situação que o leva ao seu limite e você estoura em raiva. O controle não funciona muito bem, embora as pessoas digam que se controlam. O caminho do budismo consiste em eliminar as sementes que fazem surgir o sentimento, no caso da raiva, eliminar todos os motivos da raiva, de modo que quando alguém o insultar, você vê nele uma pessoa perturbada, ele tem os sentimentos negativos, mas não é culpa dele, pois ele está sendo arrastado por um turbilhão de sentimentos. Da mesma forma que você olha para uma criança mimada, você deveria olhar para um adulto enraivecido. Desta maneira, o sentimento de raiva não surge em você não porque você o controla, mas sim porque ele não tem base para se manifestar, não tem terreno onde a semente brotar. Não se trata de controlar, mas sim de mudar seu carma.

Aluno - E num momento desses de extremo conflito com outra pessoa...

Monge Genshô – É bom que você pense em não agir. Existem três níveis: 1) agir com o corpo, que é quando você dá um soco. Se você sente toda a raiva, pelo menos não dê o soco. 2) não fale, não diga nada. 3) o mais complicado, onde tudo seria sido resolvido - não pense, não sinta. Como isso pode ocorrer? Treinamento. Cada vez que os sentimentos surgirem você deve tratar deles desta forma. No trânsito se alguém lhe insulta, você deve ficar calado, nem pense em nada para responder.

Aluno - Mas algumas pessoas ficam ainda mais loucas se não reagimos.

Monge Genshô – Apenas incline a cabeça e peça desculpas. Se alguém lhe insulta, você segue em silêncio e, se algumas quadras depois você esqueceu todo o ocorrido, será ótimo. Eu notei que a prática estava começando a surtir efeito quando mais de  30 anos atrás meu carro foi arrombado. Quando vi, fechei a porta e fui andando para a empresa que trabalhava e ficava a algumas quadras de casa. Quando cheguei à empresa, lembrei que deveria mandar o carro para a oficina, já havia esquecido o ocorrido. Você pode começar a exercitar isso em pequenas coisas, como copos ou pratos quebrados, apenas varra os cacos, não ponha emoções nisto.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A grande dúvida


4) Quais são então os obstáculos para a iluminação no Budismo? Ele me parece extremamente liberal em algumas coisas, mas...

Monge Genshô – Os obstáculos são seríssimos. Coisas com as quais as pessoas não lidam, como ignorância, falta de clareza e ilusão.

Aluno - A dúvida?

Monge Genshô – Não, pelo contrario, é necessária uma grande dúvida. O budismo não encoraja a crença, é muito melhor que você tenha uma grande dúvida. É bom que você chegue ao seu professor e manifeste sua dúvida, mas deve estar preparado para a resposta e admíti-la, seja ela qual for, por exemplo, se eu digo que esse banco é feito de pedra você não deve discutir e dizer que é feito de plástico. Você deve presumir que exista alguma razão para o seu professor dizer que é de pedra e você deve lidar com esse paradoxo. Não é o caso de admitir que seja de pedra, mas sim que você tenha dúvida de sua convicção de que é feito de madeira. A questão é a dúvida, e não a crença. Os koans servem para isso, instigar a dúvida e o paradoxo na mente dos praticantes. Então, voltando à pergunta, os obstáculos à iluminação são: a ignorância, os desejos, apego aos ritos e cerimônias, paixões e a raiva. O amor ou a paixão pelo próprio budismo também é um obstáculo. O pensamento de que as únicas verdades provem do Zen e todos os outros caminhos estão equivocados também é um grande problema.

Aluno - Esses são os dois extremos, o apego e a rejeição.

Monge Genshô – Exato.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Plena atenção





2)  Um dos objetivos da meditação é tentar se desvincular de passado e futuro?

Monge Genshô – É voltar-se sempre para o real, que é o momento presente. Fora do presente não existe realidade, passado é memória, futuro é imaginação.

Aluno – Mas isso é muito difícil, não é?

Monge Genshô – Sim, sem dúvidas. Passado e futuro só existem na sua mente, mas mesmo esse presente que é sua única realidade, é fugaz, pois está constantemente se transformando em passado, o que acabei de falar já ficou no passado, quando formos embora isso tudo terá ficado no passado.

Voltar para o momento presente é um exercício muito importante no Zazen, mas você deve levá-lo para sua vida diária. Hoje pela manhã enquanto fazia café pensava sobre isso, colocar o pó, colocar a água, colocar o café na cafeteira, fechar, pensava em como era fazer só e tão somente aquilo que se está fazendo, prestar total e plena atenção àquele momento. Naquele momento só existe o café a ser passado, sem problemas a serem resolvidos, nada de passado ou futuro. Este é um exercício que deve ser feito a todo o momento. Chama-se “exercício da plena atenção” e é mais fácil de ser praticado no Zazen, pois você imobiliza o corpo e tem apenas os sons à sua volta, então use-os para se manter no momento presente. É muito comum escutarmos praticantes falando de suas mentes que não param durante o Zazen, vivem em ilusões e viagens para passado e futuro, como dizemos no Zen – “é um macaco bêbado pulando de galho em galho” - e é deste vício que temos que escapar.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Srotapanna, aquele que entrou na corrente


1) O senhor falou em uma palestra sobre “entrar na corrente”, poderia falar um pouco mais sobre isso?

Monge Genshô – Penso que a intenção desta expressão em sânscrito, “Srotapanna”, que literalmente significa “aquele que entrou no rio”, srota significa fluxo e apanna aquele que entrou, seja transmitir a idéia de que você se comprometeu o suficiente com a prática para que ela arraste você.

Normalmente o que acontece com o leigo é que logo que ele inicia a prática fica empolgado, mas esta empolgação acaba e é fácil desistir.  Não existe a idéia de obrigação em praticar, não existe a noção de pecado e você não precisa participar dos retiros ou cerimônias, desta forma, as pessoas sentem-se livres para virem à Sangha quando desejarem. Mesmo os monges podem desistir quando assim o desejarem. Isso é perfeitamente possível, pois os votos são dele e não da instituição, e não haverá nenhuma excomunhão ou algo do tipo. Até mesmo um mestre com transmissão do Dharma pode dobrar seu manto e desistir do caminho.

O que acontece é que com o comprometimento, vão se criando vínculos psicológicos que vão firmando você na prática, seus amigos, o hábito de praticar, a comunidade, tudo isso vai criando um elo e fica mais difícil você se afastar, então, dizemos que alguém “entrou na corrente” quando fica muito difícil dele parar. Criou-se uma marca suficientemente forte para que ele continue sempre e, a partir de determinado ponto, o retorno fica difícil.

É como se existisse uma força alheia à sua vontade que o mantém na prática. É claro que para quem decide pelo caminho monástico, isso se torna cada vez mais forte. Acredito que isso seja assim em todo tipo de relacionamento, não é verdade? Não é assim com um namoro, por exemplo? Você conhece uma pessoa, convida para jantar, saem com mais frequência, conhece a família, coloca uma aliança no dedo e finalmente se casam, quanto mais você avança nesse processo, mais difícil de sair. Mesmo assim, não existe nada em lugar algum que diga que você esteja amarrado àquela pessoa, você pode sair do relacionamento quando desejar, mas realmente quanto mais profunda é sua relação, mais difícil de sair.


Aluno - Mas é possível sair da corrente?

Monge Genshô – Sempre dá, não existe nada de definitivo no mundo. Um dia alguém me disse que pensava ser difícil alguém “dar para trás” espiritualmente. Dar para trás na vida é muito fácil. Você pode sair da Sangha, se deparar com um briga no transito, discutir e matar uma pessoa, pronto, vai parar na cadeia e, de tropeço em tropeço sua vida pode ficar muito complicada.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O que você acredita não tem importância



Pergunta: O que fez com que o Buda visse as 500 vidas anteriores dele? O que determina isso? Há um princípio para isso?

Monge Genshô – Este assunto não interessa. O budismo não discute coisas não verificáveis. Você pode perguntar “como começou o mundo?”. Ah, não interessa. Têm várias teorias científicas para isso. Como começou o primeiro carma? Não sei. Eu sei que há carma aqui e agora, porque todas as ações tem efeitos e consequências. E é sobre isso que o budismo fala. Ele não faz especulações filosóficas que não temos capacidade de responder. Desta forma o budismo vem evitando todos os conflitos com a ciência que todas as outras religiões já tiveram. Porque o budismo não é religião de explicação, isso aí é para a ciência. O budismo é a religião do despertar, cujo interesse é saber como funciona o processo de ilusões na mente, como elas são construídas. Ah, se existe um impulso, uma consciência que resiste à morte e renasce em outro corpo. Sim, me parece bastante plausível. Mas está claro que ela não carrega um “eu”, não carrega uma personalidade. Se carregasse um “eu”, eu me lembraria de uma vida passada, e o meu eu seria o agregado das memórias da vida passada também. Mas eu não tenho memória de uma vida passada, só tenho desta. Portanto, todos os “eus” surgem agora e cessam agora. Se há continuidade, me parece evidente por uma questão de justiça. Se existe continuidade do carma, então existe continuidade de tudo o que você fez. E se eu tivesse um acesso de sabedoria superior, eu poderia rememorar vidas passadas. Mas isso é inútil aqui e agora! Completamente inútil para você. Primeiro você precisa despertar, e talvez aí isso seja útil.
Então, o budismo considera a continuidade desde impulso que irá se manifestar em novas existências, mas não ficamos discutindo isso. Até para vir se sentar e fazer meditação, isso não importa. O que você acredita não tem muita importância.

(Final das perguntas e respostas na palestra no centro de yoga em Palmas, Tocantins, decupada da gravação por Sonielson San)

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Livre arbítrio



Pergunta: Como a meditação nos ajuda a atingir o despertar?

Monge Genshô – Te dando lucidez. A meditação ajuda para obter clareza. Quando eu digo isto sobre a floresta e sobre o mar, numa analogia à humanidade, é porque sentado em meditação eu senti isso. Então eu posso falar. Você usa o seu corpo como âncora para estabilizar a sua mente, e à medida que com a sua mente você vai a níveis mais profundos de consciência, passa a compreender coisas que não compreendia antes, não com o seu raciocínio, mas com seu sentimento. Se você for a um nível mais profundo, nenhuma pergunta resta sem resposta. Uma vez eu me reuni com um empresário de palestras, e ele me falou que “perguntas e respostas são sempre perigosas”, porque imagine se alguém faz uma pergunta e o palestrante não sabe responder? Mas, na verdade, para um professor do zen, qualquer pergunta é admissível, e você tem que responder todas.

Pergunta – Tem como o senhor falar um pouco sobre a visão que o senhor tem do livre arbítrio? Nós temos livre arbítrio?

Monge Genshô – Em parte, sim. Mas de maneira muito limitada. O livre arbítrio foi apresentado como uma construção para tornar um criador inocente das consequências (da criação). Se o criador fosse responsável por todas as consequências de tudo o que ele fez, se ele soubesse de tudo, ele seria tão responsável quanto qualquer artífice que faz uma coisa que dá errado. O livre arbítrio me faz lembrar-se de uma frase do João Ubaldo Ribeiro, que morreu estes dias, no livro sobre luxúria: - “Como alguém pode se sentir culpado de sentir algo que foi criado para sentir?”. Então quando nós dizemos livre arbítrio, você tem que se perguntar se você o tem realmente sobre o crescimento de sua barba, por exemplo. Não, não tem. Diante de quem? Da testosterona? Dos hormônios do seu corpo, que podem alterar o seu humor e seus desejos? Você é livre realmente, ou em grande parte sua conduta é ditada pela sua própria condição de ser humano? Então em que medida nós estamos realmente livres nas nossas decisões? Normalmente nós fizemos uma corrente de acontecimentos que nos conduzem numa determinada direção. Às vezes nesta corrente existe um remanso e você tem a oportunidade de nadar para o lado, de mudar o rumo da sua vida. Às vezes você tem grandes momentos de escolhas, uma escolha pequena que pode causar um enorme resultado, como aquele exemplo do efeito borboleta. Mas em grande parte a nossa vida vai transcorrendo numa corrente lógica. Vocês precisam comer, então precisam trabalhar, precisam ter renda, e precisam disso e daquilo. Então, as escolhas que fazemos têm que ser amadurecidas e às vezes levam anos para que possam ser executadas, devido à própria contingência da condição humana. Mudar o carma é complicado, precisa grande esforço. É possível? Sim, é possível. Claro que é possível. Mas vai demandar esforço, tempo... agora dizer que uma pessoa é verdadeiramente livre, é ignorar as condições em volta. Você vai dizer a um rapaz criado numa periferia violenta de uma grande cidade que ele teve livre arbítrio?  Nós temos que pensar no carma. Quais foram as circunstâncias pregressas que resultaram nesta condição? O objetivo de agora em diante, portanto, é saber como conseguir se livrar destes condicionamentos e energias aprisionantes a certas formas de reação.

Pergunta – Mas quando se fala em livre-arbítrio, eu me reporto àquela ideia de que todos os dias nós temos a possibilidade de escolher este ou aquele caminho, de ir para a direita ou esquerda, por exemplo... se não, a impressão que fica é que estamos totalmente presos, sem possibilidade de mudança...

Monge Genshô – Sim, nós temos alguma opção, mas isso não pode ser confundido com liberdade plena. Eu não posso chegar e dizer assim: - “Você é culpada por tudo o que está acontecendo na sua vida, desde o seu nascimento”. Não é verdade! Você já nasceu no Brasil, isso já muda as coisas. Se você tivesse nascido na Noruega seria diferente. Uma coisa é você nascer na Faixa de Gaza, outra coisa é você nascer em Luxemburgo. Então o livre arbítrio ocorre em termos, porque você tem alguma liberdade, mas ela não é tanta assim. E a maioria das pessoas que eu conheço, têm suas vidas condicionadas desde a infância, com coisas que começaram muito remotamente. Com papai, com mamãe, com dado país. Até o fato de você ter nascido mulher, dá para mudar? Olha, até dá, mas é complicado à beça. Então você é completamente livre? Não! Grande parte do que você é já está predeterminado agora. Na verdade este conceito de livre arbítrio não pertence ao budismo. Nós estamos comentando aqui, mas ele veio de outra cultura. Ele vem de um raciocínio medieval para solucionar a questão da responsabilidade do criador na existência do mal. É isto! Mas o budismo não tem criador, portanto esta questão em essência não se coloca.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Vendo a humanidade



Pergunta: Monge, eu gostaria que o senhor falasse mais sobre o apego.

Monge Genshô – É mais um dos agregados do ego. É como se você fosse algo com ganchos, e no decorrer da sua vida você pendura coisas neste ego. Meu carro, minha casa, minha roupa, meu emprego, meu título. Quanto mais coisas você engancha, maior chance de sofrimento você tem, porque por mais coisas o seu sofrimento vai ocorrer. Você ampliou a área de contato com o mundo, com as possibilidades de sofrimento. O apego são estes ganchos, mas você poderia ter tudo isso sem ser um anzol, sem ter um anzol em cada coisa.
Por exemplo, nós não sofremos por causa de amor. Nós sofremos por causa de apego. Todo mundo entende quando a gente diz que “você tem um filho, daí o filho ganha uma bolsa para estudar no exterior, aí vem uma mãe e diz: ‘não, você não vai, porque você não vai me deixar aqui sozinha’”. Isso é apego. Mas se ela ama realmente este filho, ela diz: - “Meu filho, vai ser tão bom pra ti. Vai!”. Depois ela vai sofrer quando vir o quarto do filho vazio, mas o amor é desapegado. O apego é que é fonte de sofrimento. Como se livrar do apego? Ora, mais compreensão, mais sabedoria. O que você diria para a mãe que diz “não, não vai meu filho?”. Diria, você é uma egoísta, você está prejudicando e impedindo o progresso do seu filho. Você diria isso para ela, não é? Ou seja, você tentaria dar sabedoria para que ela compreendesse que o filho não é uma propriedade dela, algo que ela enganchou,  algo que ela não pode largar de jeito nenhum.

Pergunta: Então o não-eu é a dissolução destes papéis? Nós deixamos de ser uma individualidade...

Monge Genshô – Sim! Você usa a individualidade como instrumento, mas você sabe que não é aquilo. “Eu tenho um eu, mas eu não sou aquilo”. Na verdade, vocês pensam: - “Eu estou vendo uma palestra com o Monge Genshô”. Mas o Monge Genshô não é isto que vocês estão vendo. Eu sou uma criatura de sonho, construída para vocês enxergarem. Você todos são criaturas de sonho também. Eu sou uma criatura de sonho falando para criaturas de sonho, por isso morte e nascimento não existem também. Nós acreditamos que nascemos e morremos. Não é verdade! Nós só somos a vida se manifestando. É a vida que nos vive, não somos nós que vivemos a vida. Então, a humanidade vista como um todo é algo lindo. O sofrimento surge quando passamos a observar as particularidades, quando passamos a olhar para cada pedacinho daquele que aparentemente nasce, se desenvolve, passa por declínio e morre. Ora, nós só olhamos para as “ondas individuais”, e cada onda individual desta vai quebrar, mais cedo ou mais tarde. Eu estou falando para uma platéia de condenados a morte, não estou? (risos). Todos têm uma corda amarrada no pescoço, estamos caindo de um precipício, ninguém sabe o comprimento da corda, a qualquer momento “pá!”, não é? É assim para mim também. Isso é trágico? Não! Isso é como o mar e como a floresta. Nós somos esse imenso conjunto, mas nos pensamos como indivíduos. E assim como loucos pensariam que cada folha é um indivíduo e que é trágica a sua morte, assim também são loucos os homens que olham para a humanidade e lamentam suas mortes. Nós devemos festejar a maravilhosa vida que pulsa a todo instante. Isto sim, isto é ver a humanidade.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Papéis sofredores


Pergunta: E quando não tem mais jeito de ajudar uma pessoa? Quando o nível de depressão dela é tão grande, que faz até medo ela se suicidar... Os amigos trabalham o tempo inteiro  mas a pessoa não reage...

Monge Genshô – Esta é uma questão muito comum, que sempre é levantada. Por exemplo, uma pessoa perdeu um filho único, e daí toda a família quer ajudar, e fica todo mundo em volta. Então, quem ela é? Ela é a mãe sofredora que perdeu o filho. E se ela abandonar isto, cadê a identidade dela? Ela não sabe, mas precisa ser a mãe sofredora que perdeu um filho para ser importante. Em algum momento alguém precisa chegar e dizer: -“ Chega!”. A vida, o tempo inteiro, se apresenta na frente. Há uma vida e mais outras vidas para viver, você não precisa acabar-se porque perdeu um filho. Minha avó materna perdeu 20 filhos. Ela teve 23 filhos, sobraram três e ela continuou vivendo. Ela era uma avó muito interessante para mim, muito amorosa com o neto. A minha mãe perdeu quatro filhos. E no fim da vida ela dizia “como eu sou feliz, como eu sou feliz”. Sim, muito feliz. Não é necessariamente porque aconteceu algo em sua vida que você está acabado, porque ainda há muita coisa, ainda há muitas vidas para se viver. Agora se você ficar agarrado na fantasia, no papel de sofredor e de vítima, pode ser que este papel seja tudo que sobrou para você, e a atenção dos seus amigos seja preciosa. Imagine, e se abandonar este papel? Será que os amigos vão correr atrás, vão tentar consolar?  Quem sabe vocês estão ajudando tanto esta pessoa, que ela não pode mais escapar deste papel?

Pergunta: Voltando à questão das identidades, como tratar disso com as crianças pequenas?

Monge Genshô – Então, como eu já falei nós precisamos de identidades para transitar no mundo. Então dê a elas identidade. Iluminação é outra coisa que vem depois, mas como ser humano você não vai poder viver sem identidade.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O eu necessário


Pergunta: Quando o senhor diz que somos iguais, e que devemos esquecer-nos de nós mesmos. Vem-me à mente que a busca do autoconhecimento já não é mais tão importante nesta jornada [espiritual]. É isso?

Monge Genshô – O autoconhecimento é importante sim. A dificuldade aqui é que já estou apontando o fim do caminho, mas existe um caminho para andar, e enquanto você percorre este caminho, você só poderá o fazer com a ajuda deste seu “eu”. A gente diz: - “Esqueça seu eu!”. Mas como você pode esquecer seu “eu”, se você não usar este “eu” para agir neste mundo? Então, até que você chegue a esta dissolução, você só pode caminhar consigo mesma, com seu “eu”. Isto é um conflito, não é? Uma grande dificuldade. Mas todos começam uma prática espiritual procurando alguma coisa para si mesmos, e portanto existe uma mente aquisitiva, afinal “para quem você procura?”. – “Ah, eu procuro para mim!”. Não é esta a resposta? Quando eu venho sentar para fazer meditação, ou venho fazer ioga... quem vem? – “Eu venho!”. Para quem você quer esta libertação? – “Para mim”. Mas você só vai se libertar quando esquecer o “mim”. Mas você precisa deste “mim” para vir fazer a prática, não é? Estou adquirindo a estabilidade, este é o primeiro passo. Esta condição, no entanto, ainda denota uma condição de aprisionamento, como acontece com alguns santos, cheios de virtudes, mas que muitas vezes ainda têm uma postura baseada numa mente aquisitiva.
Na prática do zen é diferente. Um dos meus primeiros professores se encontrou com um homem que estava passando por um grande drama pessoal. Sentaram-se à mesa, e o homem disse: - “Mestre, eu estou passando por um problema muito grande. Eu vou me embebedar! É algo sem solução...”. E o mestre falou: - “Então eu vou me embebedar junto com você!”. Este é um mestre zen! Porque se tem um sofrimento ali insolúvel, e tudo o que você vê que pode fazer é se embebedar, eu me embebedo junto com você, porque eu sofro junto com você. Se não tem solução, eu sofro junto com você.
Algumas vezes as pessoas me perguntam: - “Mas monge, vem alguém e me conta um sofrimento cheio de ego... ‘ah, aconteceu isso, acabou, fui abandonado e etc.’... a pessoa chora, se esperneia. O que o senhor diz numa circunstância destas? O senhor diz pra ela que é ilusão?”. Eu não vou dizer que dor de cotovelo tem “meu” e “minha”, tem o ego envolvido. Não, eu vou chorar junto com a pessoa. O que mais posso fazer? Mas eu sei que daqui a mais um tempo passa, e passa com todos. Já passou comigo, passa para vocês também, não é? (risos).

Pergunta: Mestre, voltando a esta questão da ausência do “eu”, imagino que isso gera um grande conflito na mente da pessoa. Pois nós só nos percebemos, quando também percebemos que o “outro” existe, numa espécie de contraste. Ou seja, porque o outro é diferente é que “eu me percebo como eu”...

Monge Genshô – Este é um verdadeiro koan, não é? Porque nós estamos acostumados a pensar que o mundo só se organiza a partir de uma personalidade estruturada através de um “eu”. A nossa própria psicologia age assim. Quando você vai até um terapeuta, ele faz o quê? Vamos estruturar esta personalidade para ela ser resiliente, resistente ao mundo, para se levantar da crise e enxergar bem o “eu” e o “outro”. A abordagem do budismo é completamente diversa, mas nós não dizemos que vamos aniquilar o “eu”, não é isso, pois você precisa deste “eu” para transitar no mundo. Mas este “eu” é uma mera construção. Vocês foram apresentados para mim agora: - “Ah, este é o monge Genshô”. Monge é uma construção, Genshô é um nome que foi dado durante uma ordenação por um mestre, eu não escolhi. Assim como o nome que minha mãe me deu. Esta roupa é uma fantasia que está sendo usada há séculos, milênios, dentro do zen. Tudo isto são construções. E elas [as construções] são úteis para fazer esta palestra aqui e agora. Se eu entrasse sem roupa, se não tivesse título nem nada, quem me ouviria? Perguntariam “quem é você?”. E eu diria “não sei, não tenho uma boa ideia sobre isso” [risos]. Isso teria credibilidade? Não, não teria! Então na realidade vocês me ouvem, também, por causa desta construção. Mas eu sei que estes paramentos todos são uma construídos, e que quando eu chego ao hotel e penduro a roupa no cabide, o monge Genshô não está pendurado no cabide. E daí eu posso usar outras personalidades. Quando eu sou consultor e entro numa empresa, me indagam: - “Sr. Chalegre, o que o senhor pensa disso?”. Aí eu digo “penso isso, isso e isso!”. Cheio de opinião e certeza. É outra vida, é outro “eu”.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Os deuses "explicação"


Perguntas: De forma geral, as religiões usam alegorias para explicar a existência de praticamente todos os fenômenos. Isso ocorreu, também, no caso da invenção de um deus antropomórfico?

Monge Genshô – É, isso é natural. Porque os homens sempre inventaram religiões para dar explicações. Por exemplo, os italianos viam lá o [vulcão] Etna. Dele saía fumaça e fogo. E o que os homens conheciam que saía fumaça e fogo? A forja dos ferreiros. Então Vulcano se tornou o grande ferreiro. Vulcano estava lá embaixo [do vulcão] e o Etna não passava da “chaminé” da forja de Vulcano. Então os homens tinham um deus para isso. Exatamente igual aos gregos, que olhavam para o céu e viam passar o sol. Mas quem conduzia o Sol? Então disseram que era o deus Apolo quem conduzia o Sol, com seu carro de fogo. Nós esquecemos estas coisas, mas por exemplo os índios daqui [do Tocantins] ainda têm o deus da chuva. Daí nós temos deuses para explicar tudo o que nos não entendemos.
À medida que nós vamos entendendo algumas coisas, os deuses vão desaparecendo. Zeus lançava raios de cima do Monte Olimpo, mas quando passamos a entender mais – e sabemos que os raios são fenômenos elétricos –, nós esquecemos os deuses da eletricidade e dos raios. Alguém aqui ainda acredita nos deuses dos raios? Ninguém, porque as crenças recuam à medida que o saber aumenta. Sempre digo em minhas palestras que o zen não é a religião de acreditar. Ela é a religião de “acordar” das ilusões. E os deuses fazem parte das ilusões, pois nós os criamos para nos socorrer. Embora o budismo não possa ser considerado uma religião ateísta, e sim não-teísta. Mas isso é tema para outra questão.
Esta resposta do zen pode ser terrível quando se vai ouvir uma palestra. Tenho até certo receio de dar estas respostas tanto alguém pode se sentir abalado. Mas a visão do zen é de que não adianta rezar para Buda, ele já morreu. Quem pode resolver todos os problemas do sofrimento “está aqui dentro”. Eu posso atuar para resolver os problemas dos meus sofrimentos, e você pode resolver os problemas do seu sofrimento. Mas para resolver estes problemas, você tem que se esquecer de “meu” e “eu”. Enquanto ainda acreditar em “eu” e “meu”, você não entenderá o universo.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Qual a sua face antes dos seus pais terem nascido?


 (continuação)
O Zen é um método de estudar o budismo, que se utiliza da mesma prática que Buda usou, que é a meditação. Mas a meditação e o Dharma não são propriedades do budismo nem do Zen. Eles estão aí no mundo, existem múltiplos métodos para serem praticados, pois as pessoas são diferentes e, assim, precisam de diferentes métodos. Por isso que nós temos que jamais dizer “eu tenho a verdade, ou este é o caminho e os outros estão todos errados”. Até o conceito de certo e errado, como eu explico no livro “O Pico da Montanha é onde estão os meus pés”, é um engano no campo do absoluto, pois também está no campo da dualidade. Eu não posso dizer, senão relativamente, que isso é certo, e aquilo é errado. Nós temos o dharma, a sabedoria. E nós temos ignorância, é claro. Mas nós podemos sair da margem da ignorância e atravessar para a margem da sabedoria. Isso significa prajna paramita (prajna = sabedoria / paramita = a outra margem). Agora se eu pego o barco, ou um veículo dado – que é uma forma de espiritualidade qualquer –, atravesso o rio da ignorância e chego à outra margem, se eu for um bodhisatva (ser iluminado, repleto de compaixão) eu retorno para ajudar os seres que estão na margem da ignorância. Porque eu não posso ir sozinho, e aquele barco eu não posso carregar nas costas. Por isso os bodhisatvas permanecem aqui. (Final da palestra)

Perguntas

Pergunta: Monge, quando se fala naquela diferença entre atman e anatman, me vem à mente aquela pergunta “como era a sua face antes do seu pai nascer?”. Afinal, existe alguma “raiz” para essa natureza búdica?

Monge Genshô – Então, este é um famoso koan que não comporta uma resposta simples. A pessoa não pode “mostrar a sua face antes dos seus pais terem nascido”. Não há uma resposta lógica para isso, e então a pessoa tem que enxergar a resposta além da resposta. Se ele conseguir isso, ele entrará na sala [do mestre que o fez tal pergunta] como se estivesse carregando uma coisa preciosa. – “Mestre, eu achei! É esta minha face antes dos meus pais terem nascido”. Se você conseguir fazer isso, é um grande passo no despertar. E é por isso que esta pergunta existe. Mas enquanto se procura reponde-la com a mente racional e lógica, ainda não se entendeu a pergunta, já que se trata de uma provocação não lógica. É como se me dissessem para mostrar uma árvore sem raiz. Para esta questão, Joshu respondeu: - “O cipreste do jardim”. Mas daí se você vem com a mente lógica, vai logo dizer que os ciprestes têm raiz. – “Que pergunta absurda é esta?”. E o mestre olha para você e o manda embora. Vá sentar para meditar e só volte  para dizer qual é a árvore sem raiz. E por que o cipreste no jardim é árvore sem raiz? Responda... Isso é um koan! Trata-se de um dos instrumentos de prática que se usa no zen, mas é muito difícil... é um tema que gera uma discussão muito profunda, e não se aplica, por exemplo, a uma palestra para um público iniciante na prática. Embora no zen nós termos a tradição de aceitar todas as perguntas que nos são feitas. Nenhuma pergunta pode deixar de ser respondida. Agora, se você não entende a resposta, azar o seu, pratique mais (risos).



quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Guerras e disputas


 (continuação)
Dogen Zenji, fundador da nossa escola, 750 anos atrás, disse que “estudar o zen é estudar a si mesmo, estudar a si mesmo é esquecer-se de si mesmo, esquecer-se de si mesmo é ser iluminado por todas as coisas”. Esta é a essência do ensinamento zen budista, que automaticamente leva à construção de uma cultura de paz. Como não haveria paz se esquecêssemos de nós mesmo? Imaginem agora lá, naquele conflito entre israelenses e palestinos. Se eles amanhã esquecessem aonde nasceram, que raça têm, que cultura têm, que religião têm, eles olhariam uns para os outros e diriam: - “Olhos, nariz, boca, orelhas... braços como os meus. Oh, irmão!”. São brigas de adultos com idéias de crianças, com a noção de “eu sou separado”, “esta terra é minha”, “o outro é diferente de mim”, “ele é meu inimigo”. Se fossem capazes de esquecerem-se de si mesmos, tudo estaria resolvido. Então todo o conflito ali não está criado só com base na disputa de terras. Quando nós dizemos que vamos resolver o conflito fazendo tratados sobre fronteiras, trata-se de uma solução que não têm sustentação. Porque dentro das cabeças continua a noção de que “eu sou separado”, e depois das fronteiras surgem as disputas por territórios.

Enquanto na Europa cada país pensava e se via separado dos demais, houve terríveis guerras. No século XX houve uma mortandade horrorosa na Europa com as duas grandes guerras mundiais, tudo porque as pessoas acreditavam numa coisa chamada de “fronteiras”. – “Eu sou diferente do outro que está lá! E eu tenho medo dele!”. Uns tinham medo dos outros, e alguém tinha que atacar primeiro, de forma “preventiva”. Essa é bem a origem da 1ª. Guerra Mundial. – “Eu tenho que atacar o outro primeiro, porque ele está se armando. Então também estou me armando”. Mas do outro lado o pensamento é o mesmo. Foi daí que surgiu uma enorme catástrofe. Quando, no entanto, a região pensou – apenas parcialmente – em usar a mesma moeda e em abrir as fronteiras para a livre circulação de mercadorias e de pessoas, acabou completamente a perspectiva de um conflito. Hoje em dia é inimaginável que França e Alemanha, que se despedaçaram duas vezes no século XX, ou seja, há apenas 70 anos atrás, começassem uma guerra. Isso ocorreu porque os conflitos e as fronteiras foram diligentemente dissolvidos. Mas ali do lado, na parte oriental do continente, na Ucrânia, alguém pode pensar: - “Esta terra é minha, eu sou pró-Rússia”. Ou: - “Eu sou pró-Ucrânia. Eu falo uma língua, o outro fala outra língua”. Quando eles pensam assim, pronto! Está instalado o conflito! Se pelo menos não houvesse “meu e minha”, não haveria conflito...

Isto vale para todas as relações humanas. A cultura da guerra nasce do conceito de dualidade, nasce do conceito de que “eu sou separado, o outro não sou eu”. A cultura budista vem dizer que o dualismo é pura ilusão, todo “eu” é ilusão e, portanto, “meu, minha” também são ilusões. Assim, diferenças e distâncias entre os seres não passam de processos ilusórios. Por isso que os Votos do Bodhisatva são quatro: “os seres são inumeráveis, e faço voto de libertá-los todos; as delusões (ignorâncias, paixões, emoções) são inexauríveis, e faço voto de extingui-las todas; os portais do dharma são incontáveis, eu faço voto de atravessá-los todos [se eu meramente entender o portal do dharma sobre o eu, meu, minha, sobre a divisão e a separação, quantas coisas já estariam resolvidas?]; o caminho de Buda, o caminho do despertar, é infinito, e eu faço voto de percorrê-lo até o fim”. Estes são os Votos do Bodhisatva. E o bodhisatva é o ideal que o ser humano tem que seguir, na visão do budismo mahayana. (continua)

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Saia de você!


 (continuação)
Se eu não apenas acreditar, mas escolher e apontar um escaninho como o único que é certo, automaticamente eu também estarei admitindo que todos os outros [caminhos] estão errados. Este é o cerne da divisão, baseado no dualismo da verdade/mentira, certo/errado. É daí que surge o conflito. Se nós fôssemos capazes de abandonar estas classificações, automaticamente o conflito desaparece porque a separação desaparece.

Nós queremos classificar as pessoas em raças, por exemplo. E isso é muito interessante acontecer num país de mestiços como o Brasil, aonde a gente olha nos rostos e vê em cada um várias raças misturadas. De modo que é extremamente difícil classificar os brasileiros como esta ou aquela raça. Contudo, continuamos insistindo tanto nisso que até criamos leis ou mecanismos para “enquadrar” as pessoas em escaninhos. Então, se as pessoas não se classificarem, nós as forçamos a fazer isso. – “Declare! Qual é a sua face? Qual é a sua raça?”. Nós fazemos isso por imposição.

Nós estamos aqui para ajudar os outros seres e esquecer-nos de nós mesmos é a essência do budismo. O sofrimento existe na noção de um “eu” separado. Porque eu me acredito separado, então gero sofrimento. E as vezes as pessoas vem até mim e dizem que têm um grande problema de depressão, de tristeza, de tantas coisas ruins, e normalmente eu recomendo uma coisa: - “Saia de você!”. Pare de olhar para o seu umbigo. Se você sofre de solidão, há crianças nos orfanatos e idosos em casas de repouso que adorariam receber visitas. Há muitas pessoas que estão muito necessitadas que alguém vá até elas. E você permanece em casa pensando em sua solidão? Saia daí e vá visitar os verdadeiramente solitários! E se você for visitar os verdadeiramente solitários, você se livrará de sua solidão. Mas, na verdade, as pessoas dificilmente seguem esta receita.

Todas estas angústias surgem dentro da mente, quando acreditamos na ideia de um “eu” separado. Por causa disso criamos todos os outros conceitos, que levam a separações, a divisões e às lutas entre crenças, entre raças, entre qualquer coisa. Todas elas são oriundas do mesmo engano fundamental, o engano que diz que eu sou um ser separado. Se nós entendermos que originalmente nós não éramos seres separados, nós éramos a própria vida se manifestando, mas alguém nos ensinou que nós temos um nome, que nós somos um alguém. E quando nós acreditamos neste alguém, imediatamente surgem junto os conceitos de “eu”, “meu”, “minha”. Ao dizer “isso é meu!”, a pequenina criança já começa a lutar. – “Não beba a minha água! Este é meu copo!”... imediatamente, então, está criado o conflito.
(continua)