quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

A devoção também é um caminho


Pergunta: Acreditar em deus ou em deuses, ser devoto deles, pode ajudar ou atrapalhar na prática? Como fica isso com relação à iluminação?
Monge Genshô:
O budismo não detém o monopólio da iluminação nem do esclarecimento e nem de nada. O budismo é um método que não está baseado em fé, crença e coisas assim. Existem métodos que são devocionais. O método devocional existe dentro de algumas formas de budismo, mas está um pouco ausente do Zen. Não é que não exista, nós fazemos reverências, mas quando alguém faz uma pergunta endeusando Buda nós logo dizemos que ele era um homem como nós e que morreu, então não adianta pedir nada para ele. Algumas formas de budismo criaram outros objetos devocionais que não são Shakyamuni Buda, por exemplo, Buda Amida, que é Buda da luz infinita, que seria uma luz que permeia tudo, nós recitamos na hora da refeição o Bodhisattva da grande compaixão, Kanzeon, representada na forma de uma mulher, Kuan Yin que, na lenda budista, queria fazer o bem para todos os seres e não conseguia ajudar todos, então chorou e ganhou um grande número de braços. Mas na realidade não é um ser existente, é uma imagem visual da virtude da compaixão do ponto de vista budista. Perguntaram para um Mestre Zen “mas Kuan Yin existe?” e a resposta foi “Kuan Yin sabe que ela não existe”. Típica resposta do Zen. Tente entender.

Normalmente, nas crenças devocionais, você assume como existentes seres e então pede ajuda a eles, ora a eles e tudo mais. A pergunta que está por trás do que você disse é “funciona?” e sim, funciona. Mas não porque um ser lá fora ajude você, mas porque você ao se entregar muda. Então internamente há efeitos para você. É como perguntar se orações funcionam. Claro, para quem ora. Mas seres externos influenciam no mundo? Se influenciam estão fazendo um trabalho muito falho. Além do que se um ser poderoso estivesse lá fora e pudesse ajudar as pessoas aqui e agora você não precisaria pedir. Vocês mesmos que estão aqui entendem perfeitamente o que é ajudar alguém sem ser solicitado e sem que a pessoa saiba. Sabem que esse é um nível superior de compaixão e que a caridade que pretende obter algo, o reconhecimento público ou retorno, é muito fraca. Todas as religiões têm sentido e essas práticas têm sentido, se você não as reconhece é porque você está perdido numa visão sectária ou fanática, achando que só o budismo tem sentido. O budismo é apenas um método que tem sentido para pessoas que não se entregam para crenças.

Um dia desses alguém fez uma pergunta ligada ao enorme esforço que a humanidade fez para construir catedrais e eu disse que se você vai à Koln, Alemanha, você vê uma catedral gótica que tem 160 metros de altura. Durante séculos foi o edifício mais alto da Europa, todo construído sem ferro, só pedra sobre pedra. É tão grande que tem uma lenda de que o demônio jogou uma maldição de que ela nunca ficaria pronta. Ao lado tem uma oficina que sempre prepara pedras para colocar no lugar das que se desfazem, o que mostra que ela está sempre sendo consertada. Foram 700 anos para construir. Então você vem para uma rua, dobra a esquina e de repente a catedral está na sua frente, a impressão que você tem é que é uma montanha. Ela foi construída para abrigar uma relíquia que são os restos dos três reis magos. É evidente que isso não é verdade, mas de qualquer forma a catedral está lá e há três caixões rodeados de ouro. Houve uma época durante a Idade Média na Europa em que se produziam relíquias em grande quantidade, porque era um ótimo negócio. Mas quando a gente olha a catedral não importa se os reis magos existiram, se estão lá dentro ou não, o que importa é que a catedral é magnífica e é uma imensa obra do espírito. Então você tem que olhar assim. É por isso que passamos na frente de uma estátua de Nossa Senhora de Fátima e fazemos reverência. Porque nós enxergamos além de coisas tais como verdade e falsidade. Vamos além disso e isso sim é sabedoria. Isso é ter lucidez.

No budismo isso não está ausente. O kesa, o manto budista, é tratado como sagrado. Sempre tem que ser dobrado de uma maneira certa, colocado em um local mais alto e mais uma porção de protocolos. Nós agimos como se ele fosse sagrado, mas no Zen nós podemos dizer também que ele é só um pedaço de pano. É o manto de Buda e ao mesmo tempo é apenas pano. Tem grandes significados simbólicos, mas quem dá a ele esses significados simbólicos somos nós. Meu comportamento com o kesa é que faz dele um kesa. É o comportamento dos alunos que reverenciam a pessoa quando ela porta o kesa que faz dele um kesa. Os que possuem o rakusu têm uma miniatura do kesa sobre o peito. Isso não se joga fora quando fica velho, não se usa como pano para limpar o chão. Enxergamos essa possibilidade como algo horrível, seria a negação de tudo que foi feito. Você costura o rakusu, às vezes durante meses, faz errado, faz de novo, é difícil e é feito de propósito para não poder ser perfeito. Você pôs todo aquele trabalho nele, depois o Mestre escreve atrás e você o porta, você o dobra cuidadosamente, o tira cuidadosamente, faz oração de manhã antes de colocá-lo e é por isso que ele é o rakusu. Quando ele fica muito velho e não dá mais para usá-lo você o queima para que ninguém o use indevidamente, para que ele não vá parar no lixo ou qualquer coisa assim. Somos nós que fazemos com que essas coisas tenham efeito. É só um pano e nós o transformamos num objeto de prática. Ele em si mesmo não é sagrado. Se fosse um objeto de fé ele seria milagroso por si mesmo, uma relíquia por si mesmo, mas ele não é. Então a devoção está presente, só que o caráter dela é um pouco diferente.